CONTEXTOA hipoxemia (PaO2 baixa) é uma característica marcante da doença pulmonar intersticial (DPI) moderada a grave. O desequilíbrio entre a ventilação e a perfusão (V
̇/Q
̇) é um mecanismo dominante, com um papel secundário para a limitação da difusão (pelo menos em repouso).
(1) Em alguns pacientes, pode ocorrer shunt intrapulmonar e alteração da troca alveolar de oxigênio (O2) [shunt “fisiológico” (ShuntFÍSIO)],
(2) resultando em hipoxemia grave irreversível ou quase irreversível. Em virtude do efeito da gravidade no fluxo sanguíneo pulmonar, qualquer fração de shunt pode aumentar na posição ereta quando houver preenchimento alveolar extenso em áreas dependentes do pulmão no contexto de perfusão capilar relativamente preservada.
PANORAMA Uma mulher de 23 anos relatou dispneia progressiva e tosse seca durante alguns meses após um episódio agudo de febre e dor de garganta. A paciente foi examinada em decúbito dorsal (SpO2 = 96% em ar ambiente) e relatou dispneia logo depois de se sentar (platipneia); é interessante notar que a SpO2 era sempre < 88% quando a paciente assumia a posição ereta (ortodeoxia).
(3) Não foram identificadas exposições ambientais; entretanto, a paciente relatou uso crônico de nitrofurantoína para infecções do trato urinário. Os testes de COVID-19 e HIV foram negativos, assim como o foram os resultados da investigação de doenças hepáticas e do tecido conjuntivo. A espirometria em decúbito (≈30°) revelou reduções severas e proporcionais do VEF1 e da CVF (Figura 1A). A gasometria arterial após a administração de O2 a 100% durante 20 min revelou um aumento do shunt da direita para a esquerda, que quase dobrou quando a paciente passou da posição supina para a posição sentada (Figura 1B). A TC de tórax mostrou extensas opacidades reticulares/em vidro fosco, espessamento septal e bronquiectasias/bronquiolectasias de tração, particularmente nas faces anteriores dos lobos inferiores e no lobo médio direito/língula (padrão indeterminado para pneumonia intersticial usual; Figura 1C). A ecocardiografia transesofágica não mostrou nenhuma alteração estrutural cardíaca; entretanto, microbolhas apareceram nas câmaras esquerdas a cada 3-8 batimentos após sua identificação no átrio direito (isto é, shunt intrapulmonar).
(3) A angiotomografia pulmonar não revelou embolia pulmonar ou malformações arteriovenosas.
O ShuntFÍSIO (mistura venosa; normal ≤ 10%) pode ser subdividido em: a) shunt anatômico (ShuntANAT) via veias brônquicas, pleurais e cardíacas mínimas (normal ≤ 5%); b) shunt capilar (ShuntCAP), que representa o sangue capilar pulmonar em contato com alvéolos completamente não ventilados; c) efeito shunt (isto é, mais perfusão que ventilação).
(2) Diferentemente do gradiente alveoloarterial de O2,
(4) o ShuntFÍSIO é independente da forma da curva de dissociação de O2, mas é necessária uma amostra de sangue arterial pulmonar para a obtenção de conteúdo venoso misto de oxigênio. Fazer o paciente respirar O2 puro por tempo suficiente para eliminar o nitrogênio permite a medição da fração de mistura venosa causada por ShuntANAT mais ShuntCAP (isto é, “shunt absoluto”) sem a influência de confusão das desigualdades entre V
̇/Q
̇.
(2) Quando comunicação intracardíaca, malformações arteriovenosas pulmonares e síndrome hepatopulmonar são excluídas como causas de ortodeoxia em pacientes com DPI, outras possíveis causas são ShuntCAP aumentado e pequenos canais arteriovenosos não detectados (≤ 20 µm de diâmetro).
(5) A posição supina aumenta o retorno venoso, que é distribuído de forma mais homogênea para áreas mais bem ventiladas (campos pulmonares superiores e posteriores no presente caso; Figura 1C), reduzindo a fração de shunt e melhorando a oxigenação e a dispneia.
(3) MENSAGEM CLÍNICA Platipneia-ortodeoxia é uma possível causa de dispneia atípica/paroxística e hipoxemia refratária em pacientes com DPI na posição ereta. A quantificação de alterações posturais no “shunt absoluto” medido durante a respiração de O2 a 100% constitui um teste minimamente invasivo da eficiência da troca de O2 que depende de alterações da perfusão pulmonar regional.
REFERÊNCIAS
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- Hughes JMB, Pride NB. Pulmonary gas exchange. In: Hughes JMB, Pride NB (editors). Lung Function Tests: Physiological Principles and Clinical Applications. London: Harcourt Brace; 1999. p. 75-98.
- Agrawal A, Palkar A, Talwar A. The multiple dimensions of Platypnea-Orthodeoxia syndrome: A review. Respir Med. 2017;129:31-38. https://doi.org/10.1016/j.rmed.2017.05.016
- Neder JA, Berton DC, O’Donnell DE. Arterial blood gases in the differential diagnosis of hypoxemia. J Bras Pneumol. 2020;46(5):e20200505. https://doi.org/10.1590/1806-3713/e20200019
- Tenholder MF, Russell MD, Knight E, Rajagopal KR. Orthodeoxia: a new finding in interstitial fibrosis. Am Rev Respir Dis. 1987;136(1):170-173. https://doi.org/10.1164/ajrccm/136.1.170