“Se alguém separasse a arte de contar, medir e pesar de todas as outras artes, o que restaria de cada uma (das outras) seria, por assim dizer, insignificante.”
Platão, antigo filósofo grego
A DPOC é uma doença complexa com apresentação clínica heterogênea,(1-3) cuja gravidade está relacionada não apenas ao comprometimento funcional.(1) A percepção autorreferida de dispneia, descrição subjetiva do desconforto respiratório, varia em intensidade e deriva de interações fisiológicas, psicológicas, sociais e ambientais(4); uma gama de descritores de desconforto respiratório qualitativamente diferentes (por exemplo, inspiração não recompensada, dificuldade inspiratória ou aperto) pode, no entanto, ser relatada por pacientes com DPOC.(4) É importante ressaltar que pacientes com DPOC com alto grau de dispneia também podem apresentar baixa capacidade máxima de exercício associada, independentemente da gravidade da obstrução ao fluxo aéreo.(5) Além disso, a dispneia não é o único sintoma relatado por pacientes com DPOC: o estado da saúde respiratória e como a DPOC impacta esses pacientes podem incluir uma série de aspectos clínicos, melhorando a identificação dos desfechos relatados pelos pacientes.(1) Em suma, a DPOC pode afetar a percepção do paciente de várias maneiras. Portanto, embora os sintomas relacionados à DPOC sejam relatados como subjetivos, devemos encontrar um sistema de medição: Platão nos ensinou que a arte que não é medida é insignificante.
A escala de dispneia do Medical Research Council modificada (mMRC) e o COPD Assessment Test (CAT) foram propostos para avaliar sintomas de forma quantitativa. (6) A escala mMRC é uma escala clínica discriminativa simples que mede a percepção de dispneia definindo o nível de atividade que provoca o aparecimento do sintoma, enquanto o CAT é um questionário autoaplicável que mede os impactos relacionados à saúde em pacientes com DPOC, explorando não apenas aspectos relacionados à dispneia.(6) Tanto a mMRC quanto o CAT têm bom poder prognóstico, mas exploram particularmente sintomas diurnos, embora a presença de sintomas respiratórios, como dispneia noturna, possa ter implicações prognósticas durante o dia de 24 horas.(7) Para avaliar a percepção de sintomas de pacientes com DPOC, o relatório da GOLD de 2019,(1) que inclui o sistema de classificação ABCD, recomenda a utilização da escala mMRC ou do CAT, sem diferenciação entre os dois. As medições de sintomas, utilizando os pontos de corte específicos da mMRC (≥ 2 pontos) e do CAT (pontuação ≥ 10), definem quais pacientes têm pior percepção dos seus sintomas; essas medições classificam o risco de exacerbações em quatro categorias.(1)
No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, o estudo de Montes de Oca et al.(8) relata dados de uma grande coorte de pacientes ambulatoriais com DPOC da América Latina — o estudo denominado LASSYC — e explora o valor da percepção de sintomas no contexto do sistema de classificação ABCD da GOLD, revelando dois achados relevantes. Primeiro, os pacientes com pior percepção dos seus sintomas, de acordo com os pontos de corte propostos da mMRC e do CAT, foram distribuídos em diferentes categorias de risco. Segundo, os pacientes com sintomas durante um dia de 24 horas foram mais bem identificados pelo CAT do que pela escala mMRC utilizando o sistema de classificação ABCD da GOLD. Ao longo dos anos, a GOLD vem lançando luz sobre vários aspectos da DPOC, como a importância de centralizar o conhecimento dos aspectos clínicos específicos da doença. No entanto, surge uma questão subliminar graças ao estudo de Montes de Oca et al.(8): estamos utilizando medições adequadas para definir os diferentes níveis de gravidade da DPOC?(9) Uma matemática e cientista da computação americana, Grace Murray Hopper, disse: “Uma medição precisa vale mais do que mil opiniões de especialistas.” Na definição de pacientes com maior percepção de sintomas, de acordo com o sistema de classificação ABCD da GOLD, não há utilização equivalente dos pontos de corte da escala mMRC e do escore CAT.(8) Nesse contexto, a escala mMRC e o escore CAT nos fornecem informações sobre dois aspectos derivados da autopercepção dos pacientes: a gravidade da dispneia e o impacto da doença, embora não devamos esquecer que a dispneia é um, mas não o único sintoma da DPOC. A classificação da GOLD utilizando o escore CAT é provavelmente mais sensível para identificar características inexploradas dos pacientes relacionadas à percepção de sintomas durante um dia de 24 horas.(8) No entanto, se esses dois métodos de medição são diferentes, os grupos GOLD nos quais colocamos os pacientes serão diferentes, infelizmente afetando a previsão de progressão da doença e a revisão terapêutica. Caracterizar a doença por meio de duas medidas objetivas diferentes significa observar dois pacientes diferentes!
No estudo de Montes de Oca et al.,(8) é necessário focar os pacientes com DPOC que perceberam mais sintomas (grupos B e D). Nesses pacientes, a possibilidade de discriminar sintomas durante um dia de 24 horas é mais prevalente e é necessário realizar um ajuste terapêutico, conforme o documento da GOLD. (1) Esses dois grupos (B mais D) representaram 56% e 73% dos pacientes, respectivamente, utilizando a escala mMRC e o escore CAT, enquanto a distribuição de pacientes com risco elevado de exacerbação (grupos C mais D) foi menor e semelhante (37%) independentemente do instrumento de avaliação. Em suma, o estudo LASSYC envolveu uma excelente coorte de pacientes ambulatoriais com DPOC sintomáticos, avaliando a presença de sintomas durante um dia de 24 horas. Nesse contexto, o escore CAT (em vez da escala mMRC), graças à avaliação multidimensional da complexidade da DPOC, parece ser mais capaz de identificar percepções inexploradas dos pacientes, conforme demonstrado pela forte correlação com a intensidade dos sintomas diurnos. (10) Vale ressaltar que o escore CAT também discrimina pacientes com DPOC com disfunção das pequenas vias aéreas.(11) No entanto, o ponto de corte de 10 do CAT não pode ser utilizado como equivalente ao ponto de corte de 2 da mMRC: há um índice de Youden maior para 1 ponto do que para 2 pontos na escala mMRC. É hora de revisar esse aspecto no documento da GOLD.
Uma consideração final deve ser feita. O estadiamento de pacientes com DPOC no documento da GOLD(1) começa de fato a partir da exploração do efeito de uma terapia direcionada (broncodilatadores ou corticosteroides inalatórios) em uma população-alvo (pacientes com DPOC com pior percepção de sintomas ou com elevado risco de exacerbação): isso pode definir categorias de pacientes com necessidades diferentes, mas não define os níveis progressivos de gravidade da doença. Em virtude da complexidade da DPOC, ainda não foi definido um marcador objetivo de progressão da doença. No entanto, a capacidade de movimentação dos pacientes (função primária, exercício, atividade física ou um substituto biológico muscular),(12) por exemplo, pode ser um sinal indireto do real impacto de uma doença respiratória em um organismo, sendo um importante resultado derivado dos pacientes. Aprendemos que ter resultados diferentes de acordo com medidas diferentes de sintomas subjetivos pode nos dar uma medida diferente de doença.
REFERÊNCIAS
1. Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (GOLD) [homepage on the Internet]. Bethesda: GOLD [cited 2021 Aug 20]. Global Strategy for the Diagnosis, Management, and Prevention of COPD 2019 Report. Available from: https://goldcopd.org
2. Clini EM, Crisafulli E, Roca M, Malerba M. Diagnosis of chronic obstructive pulmonary disease, simpler is better. Complexity and simplicity. Eur J Intern Med. 2013;24(3):195-198. https://doi.org/10.1016/j.ejim.2012.12.009
3. Crisafulli E, Costi S, Luppi F, Cirelli G, Cilione C, Coletti O, et al. Role of comorbidities in a cohort of patients with COPD undergoing pulmonary rehabilitation. Thorax. 2008;63(6):487-492. https://doi.org/10.1136/thx.2007.086371
4. Crisafulli E, Clini EM. Measures of dyspnea in pulmonary rehabilitation. Multidiscip Respir Med. 2010;5(3):202-210. https://doi.org/10.1186/2049-6958-5-3-202
5. Crisafulli E, Aiello M, Tzani P, Ielpo A, Longo C, Alfieri V, et al. A High Degree of Dyspnea Is Associated With Poor Maximum Exercise Capacity in Subjects With COPD With the Same Severity of Air-Flow Obstruction. Respir Care. 2019;64(4):390-397. https://doi.org/10.4187/respcare.06336
6. Vogelmeier CF, Alter P. Assessing Symptom Burden. Clin Chest Med. 2020;41(3):367-373. https://doi.org/10.1016/j.ccm.2020.06.005
7. Lange P, Marott JL, Vestbo J, Nordestgaard BG. Prevalence of night-time dyspnoea in COPD and its implications for prognosis. Eur Respir J. 2014;43(6):1590-1598. https://doi.org/10.1183/09031936.00196713
8. Montes de Oca M, Lopez MV, Menezes A, Wehrmeister F, Ramirez L, Miravitlles M. Respiratory symptoms (COPD Assessment Test and modified Medical Research Council dyspnea scores) and GOLD-ABCD COPD classification: The LASSYC Study. J Bras Pneumol. 2021; 47(5):e20210156.
9. Karloh M, Fleig Mayer A, Maurici R, Pizzichini MMM, Jones PW, Pizzichini E. The COPD Assessment Test: What Do We Know So Far?: A Systematic Review and Meta-Analysis About Clinical Outcomes Prediction and Classification of Patients Into GOLD Stages. Chest. 2016;149(2):413-425. https://doi.org/10.1378/chest.15-1752
10. Miravitlles M, Menezes A, López Varela MV, Casas A, Ugalde L, Ramirez-Venegas A, et al. Prevalence and impact of respiratory symptoms in a population of patients with COPD in Latin America: The LASSYC observational study. Respir Med. 2018;134:62-69. https://doi.org/10.1016/j.rmed.2017.11.018
11. Crisafulli E, Pisi R, Aiello M, Vigna M, Tzani P, Torres A, et al. Prevalence of Small-Airway Dysfunction among COPD Patients with Different GOLD Stages and Its Role in the Impact of Disease. Respiration. 2017;93(1):32-41. https://doi.org/10.1159/000452479
Clini EM, Crisafulli E. Exercise capacity as a pulmonary rehabilitation outcome. Respiration. 2009;77(2):121-128. https://doi.org/10.1159/000192773