A despeito das mínimas quantidades, vitaminas são indispensáveis ao funcionamento do organismo. Hábitos de vida e alimentação saudáveis suprem as necessidades diárias, inclusive de vitamina D (VitD), resultado da adaptação do ser humano ao longo de milhares de anos para obtê-la a partir de fontes naturais, seja pela síntese na pele a partir da exposição à luz solar, seja pelo consumo de alimentos ricos em sua provitamina, tais como ovo, peixes de água fria, cogumelos e óleo de fígado de bacalhau.(1)
Concentrações adequadas de VitD modulam a resposta imunológica e atuam decisivamente na saúde respiratória. Na deficiência, isto é, em concentrações séricas inferiores a 10 ng/mL, ocorrem inflamação da musculatura lisa de vias aéreas, produção excessiva de muco e hiper-reatividade brônquica.
POR QUE ISSO ACONTECE?
A VitD é um dos mediadores lipofílicos que participam da imunidade inata e adaptativa. Em relação à primeira, a ação dessa vitamina apresenta maior magnitude para a saúde, pois estimula células dendríticas, células linfoides inatas e moléculas, como catelicidinas e β-defensinas, que exercem atividade antimicrobiana e promovem o treinamento imunológico e metabólico, adequação epigenética e apoptose. Favorece ainda a proliferação de células dendríticas tolerogênicas e de receptores inibitórios, protegendo o organismo da inflamação indesejada. Quanto à imunidade adaptativa, ela contribui para minimizar a hiperfunção das células Th1 e Th17 e modular a resposta Th2.(1,2) A inibição da resposta Th2 é realizada pelo estímulo TGF-β e IL-10, duas citocinas imunomoduladoras. Ambas, em associação com o estímulo do fator de transcrição Foxp3 e linfócitos T regulatórios, bloqueiam a IL-13 e a exacerbação da inflamação Th2. Dessa forma, linfócitos B produzirão, predominantemente, IL-10 e anticorpos IgG4, decorrendo bloqueio de fenômenos alérgicos. Assim, a VitD previne eosinofilia e neutrofilia com produção excessiva de IL-8 e inibe a proliferação e a diferenciação de plasmócitos hipersecretores de IgE, bem como a maturação e migração de mastócitos para as vias aéreas.(1,2)
COMO ESSE BEM ORQUESTRADO CONJUNTO DE REAÇÕES SE TRADUZ NA CLÍNICA?
Nas últimas décadas, a deficiência e a insuficiência da VitD têm sido analisadas como um biomarcador e fator de risco na profilaxia e no tratamento complementar da asma.(3) Todavia, esses trabalhos, praticamente todos conduzidos em países de clima temperado com limitada insolação ao longo do ano, não mostraram resultados convergentes. Esse fato ficou demonstrado nas conclusões de algumas meta-análises. Uma delas incluiu 36 estudos que analisaram os níveis séricos e o tratamento complementar da asma com VitD versus placebo.(3) Em 5.711 crianças asmáticas, os níveis da vitamina foram significativamente mais baixos do que em 21.561 crianças sem asma. As crianças que receberam VitD tiveram menos exacerbações do que o grupo placebo.(3) Esse fato também foi confirmado em outros estudos, nos quais não se encontraram diferenças na função pulmonar entre os grupos.(4,5)
Uma das hipóteses levantadas para explicar o menor número de exacerbações foi que os baixos níveis de VitD predispõem a infecções virais, um dos principais desencadeadores das exacerbações.(4) A comparação de diferentes estudos aponta para a heterogeneidade estatística entre desfechos clínicos e funcionais. A possível explicação reside em fatores diversos, tais como doses prescritas, níveis basais e duração dos períodos de suplementação com VitD; faixa etária dos pacientes; latitude; variabilidade amostral; riscos de vieses e seu controle; tempo de acompanhamento; e medicações utilizadas, entre elas os corticosteroides orais, responsáveis pela redução dos níveis séricos de VitD.(3-5) Outra variável crítica é inerente ao metabolismo da VitD. Sabe-se que ela tem meia-vida prolongada com sua suplementação diária por no mínimo três meses para atingir um nível sérico estável, ou seja, estratégias diferentes na administração e definição de níveis séricos podem gerar resultados distintos.
A complexidade das relações entre VitD e asma é ampliada diante da importância de variantes em muitos genes que interferem na regulação da VitD, que incluem a via metabólica e receptores no músculo liso epitelial e brônquico, que aumentam a expressão de várias citocinas e interleucinas, além de contribuírem para a associação entre VitD e inflamação.(6)
Um estudo publicado neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia traz à tona toda essa gama de comentários, questionamentos e especulações.(7) Apesar da adoção de uma amostragem populacional para obter dois grupos comparáveis, esse objetivo não foi alcançado para todas as variáveis do estudo. Por exemplo, a significância estatística verificada entre faixas etárias e categorias de escolas, bem como a diferença marginal na atividade física, podem ter potencialmente introduzido vieses de seleção tanto para a prevalência de asma quanto para os níveis de VitD. Conforme apontado pelos autores, é sabido que relações de causalidade não podem ser estabelecidas a partir de estudos transversais; apenas delineamentos de coorte ou de caso-controle podem prover a resposta. Além disso, seria desejável confirmar o diagnóstico clínico de asma ativa por meio de testes de função pulmonar. No entanto, a escassez de estudos realizados em regiões tropicais sobre o assunto torna esse um dos méritos do estudo.(7)
Na realidade da prática clínica em nosso país e talvez em seus congêneres localizados nos trópicos onde, parafraseando Ernest Hemingway, o “Sol também — e sempre — se levanta”,(8) a deficiência/insuficiência de VitD não é a primeira suspeita quando o clínico se depara com uma criança ou adolescente com asma não controlada. Essa condição, sobretudo, deve estar associada à falta ou ao uso inadequado de corticoide inalatório e de outros medicamentos indicados para asma, medidas não farmacológicas e manejo das comorbidades. Na ausência de resposta clínica a essas medidas, a reposição de VitD deve ser considerada em crianças com baixos níveis séricos dessa vitamina,(3) assim como a exposição solar cuidadosa e sistemática deve ser realizada.(9)
Entre outras, uma das razões para o surgimento das polêmicas em torno da VitD deve ser debitada ao Dr. Michael Holick. Ao lado das divergências publicadas em periódicos científicos,(3-6) o assunto ocupou espaços editoriais na imprensa leiga. Conforme matéria publicada no The New York Times em 18/08/2018, o entusiasmo do Dr. Holick pelo nutriente ultrapassou os limites das boas práticas da ciência e se adentrou pelo nebuloso terreno dos conflitos de interesse.(10) A elevação artificial do que antes se consideravam valores de referência causou uma verdadeira pseudoepidemia de carência de VitD e promoveu o aquecimento das vendas desse suplemento e de testes diagnósticos que movimentam ganhos financeiros sombrios de cerca de US$ 1 bilhão ao ano.
Nunca é demais relembrar: o Sol também se levanta.
REFERÊNCIAS
1. O’Sullivan BP, James L, Majure JM, Bickel S, Phan LT, Serrano Gonzalez M, et al. Obesity-related asthma in children: A role for vitamin D. Pediatr Pulmonol. 2021;56(2):354-361. https://doi.org/10.1002/ppul.25053
2. Hawrylowicz CM, Santos AF. Vitamin D: can the sun stop the atopic epidemic?. Curr Opin Allergy Clin Immunol. 2020;20(2):181-187. https://doi.org/10.1097/ACI.0000000000000613
3. Wang Q, Ying Q, Zhu W, Chen J. Vitamin D and asthma occurrence in children: A systematic review and meta-analysis [published online ahead of print, 2021 Aug 5]. J Pediatr Nurs. 2021;S0882-5963(21)00209-8. https://doi.org/10.1016/j.pedn.2021.07.005
4. Chen Z, Peng C, Mei J, Zhu L, Kong H. Vitamin D can safely reduce asthma exacerbations among corticosteroid-using children and adults with asthma: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Nutr Res. 2021;92:49-61. https://doi.org/10.1016/j.nutres.2021.05.010
5. Riverin BD, Maguire JL, Li P. Vitamin D Supplementation for Childhood Asthma: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS One. 2015;10(8):e0136841. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0136841
6. Ashok N, Kirubakaran R, Saraswathy R. Association of vitamin D gene polymorphisms in children with asthma - A systematic review. Heliyon. 2020;6(9):e04795. https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2020.e04795
7. maral CSF, Jordão EAOC, Oliveira CL, Felix MMR, Kuschinir MCC, Kuschinir FC. Asthma and vitamin D in Brazilian adolescents: Study of Cardiovascular Risks in Adolescents (ERICA). J Bras Pneumol.2021;47(6):e20210281.
8. Hemingway E. The Sun Also Rises. 9th ed. New York: Scribner Book Company; 1996. 290 p.
9. Alfredsson L, Armstrong BK, Butterfield DA, Chowdhury R, Gruijl FR, Feelisch M, et al. Insufficient Sun Exposure Has Become a Real Public Health Problem. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(14):5014. https://doi.org/10.3390/ijerph17145014
10. Szabo L. Vitamin D, the sunshine supplement, has shadowy money behind it. The New York Times. 2018 Aug 18; [cited 2021 Nov 10]. Available from: https://www.nytimes.com/2018/08/18/business/vitamin-d-michael-holick.html