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ISSN (on-line): 1806-3756

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Editorial

Diagnóstico de diabetes relacionado à fibrose cística: muito precoce ou muito tardio?

Diagnosis of cystic fibrosis-related diabetes: too early or too late?

Aleksandar Sovtic1,2

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220069

O diabetes relacionado à fibrose cística (DRFC) é a comorbidade mais comum associada à fibrose cística (FC). Em sua forma típica, o DRFC se desenvolve de forma insidiosa como o evento terminal das anormalidades do metabolismo da glicose, que começa com insulinopenia precoce causando intolerância à glicose e finalmente resulta em sintomas clínicos como desnutrição, declínio acentuado da função pulmonar, alterações da microbiota pulmonar e diminuição da qualidade e da expectativa de vida.(1) A presença de glicose na secreção brônquica eleva o risco de infecções respiratórias bacterianas por Staphylococcus aureus resistente à meticilina e Pseudomonas aeruginosa e de exacerbações pulmonares mais frequentes. A estabilização metabólica após o início do tratamento com insulina leva ao ganho de peso e à melhora da função pulmonar.
 
A etiologia do DRFC é complexa e principalmente relacionada à deficiência de insulina, mas alguns outros processos contribuem para ela, sobretudo a inflamação crônica e a resistência periférica à insulina.(2) A prevalência de DRFC, de acordo com os últimos relatórios anuais dos Registros das Sociedades Brasileira e Europeia de FC,(3,4) é de 4,3% no Brasil e de 22,2% na Europa e vem aumentando com o aumento da idade dos pacientes com FC. Essa prevalência varia em virtude dos diferentes momentos em que o rastreamento é realizado e dos diversos critérios diagnósticos em uso.
 
Os métodos comuns para o diagnóstico de diabetes mellitus, como a dosagem de glicemia de jejum (GJ), glicemia sem jejum ou hemoglobina glicada (HbA1C), não são suficientemente sensíveis. Os níveis de GJ são normais em metade dos pacientes com DRFC, e os níveis de HbA1C demonstraram baixos valores preditivos. (2) No entanto, GJ ≥ 126 mg/dL (≥ 7,0 mmol/L) ou glicemia sem jejum ≥ 200 mg/dL (≥ 11,1 mmol/L) e HbA1C ≥ 6,5% são critérios diagnósticos para DRFC.(5) O amplamente utilizado teste oral de tolerância à glicose (TOTG) de 2 h com 75 g de glicose foi reconhecido pela American Diabetes Association como procedimento padrão de atendimento, sendo sua realização recomendada anualmente em pacientes com FC ≥ 10 anos de idade. (2,5) Os resultados permitem distinguir entre tolerância normal à glicose (< 7,8 mmol/L), tolerância diminuída à glicose (7,8-11,1 mmol/L) e DRFC (> 11,1 mmol/L). (6) Na última década, tornou-se evidente que o TOTG subestima as anormalidades precoces da tolerância à glicose e mostra praticamente uma baixa capacidade diagnóstica para DRFC em comparação com outros métodos diagnósticos disponíveis.(7) Além disso, o teste em si é inconveniente para os pacientes, levando à baixa adesão ao rastreamento anual. Curiosamente, os dados atualmente disponíveis não conseguiram confirmar os efeitos benéficos da terapia com moduladores de cystic fibrosis transmembrane conductance regulator (CFTR, regulador de condutância transmembrana da fibrose cística) — lumacaftor/ivacaftor — no metabolismo da glicose e na secreção de insulina ao longo de 1 ano de acompanhamento.(8) Portanto, é de grande importância identificar um método alternativo de rastreamento que seja prático, sensível e específico para diagnosticar as anormalidades glicêmicas sutis que caracterizam o estágio inicial do DRFC. Ele deve se correlacionar de forma independente com as melhoras da função pulmonar após o início da insulinoterapia, mesmo que haja o uso de terapia com moduladores de CFTR.
 
O continuous glucose monitoring (CGM, monitoramento contínuo da glicose) é um método utilizado principalmente para controlar a eficiência da terapia com bomba de insulina em pacientes com diabetes mellitus tipo 1. Encontra-se validado para uso em crianças, adolescentes e adultos com FC como uma ferramenta valiosa para detecção precoce de anormalidades da tolerância à glicose. Colocado subcutaneamente, mede as concentrações de glicose no líquido intersticial a cada três a cinco minutos ao longo do tempo, na maioria das vezes de três a sete dias. O CGM permite medições precisas dos picos e vales das concentrações de glicose e da porcentagem de tempo em que os níveis de glicose permanecem acima dos pontos de corte pré-definidos.(9) Os níveis de CGM máximos apresentam correlação direta com o declínio da função pulmonar ao longo do tempo.(10,11)
 
No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Zorron et al.(12) relataram os resultados de um estudo longitudinal prospectivo que avaliou a eficácia do CGM em prever o aparecimento de DRFC em 43 crianças e adolescentes. No início do estudo, a classificação do CGM dos participantes do estudo foi baseada nos valores de corte do TOTG, analisando-se os dados coletados de 36 h até três dias. Após uma média de 3 anos de acompanhamento, o TOTG foi repetido, e 3 dos participantes haviam desenvolvido DRFC ao longo do tempo. Curiosamente, foram observados menores escores z de IMC no início do estudo e no acompanhamento nos participantes que apresentaram níveis de glicose > 140 mg/dL no CGM. Esse importante achado confirma a utilidade do CGM na identificação de anormalidades do metabolismo da glicose não detectadas pelo TOTG. Por fim, Zorron et al.(12) mostraram que nenhuma das principais variáveis obtidas a partir do CGM, como padrão pico/vale, ASC e porcentagem de tempo acima dos valores de corte, foi conclusiva para o diagnóstico de DRFC, não mostrando associações com o desenvolvimento de DRFC.
 
Em conclusão, uma melhor compreensão da etiologia e dos efeitos deletérios do desenvolvimento insidioso do DRFC deve levar ao uso mais frequente de ferramentas confiáveis, práticas e simples, como o CGM, capazes de detectar anormalidades metabólicas que antecedem os sintomas de DRFC. Os efeitos benéficos do início oportuno da terapia de reposição de insulina no desfecho global devem levar a modificações imediatas das recomendações oficiais dos critérios diagnósticos para DRFC.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Terliesner N, Vogel M, Steighardt A, Gausche R, Henn C, Hentschel J, et al. Cystic-fibrosis related-diabetes (CFRD) is preceded by and associated with growth failure and deteriorating lung function. J Pediatr Endocrinol Metab. 2017;30(8):815-821. https://doi.org/10.1515/jpem-2017-0005
2.            Granados A, Chan CL, Ode KL, Moheet A, Moran A, Holl R. Cystic fibrosis related diabetes: Pathophysiology, screening and diagnosis. J Cyst Fibros. 2019;18 Suppl 2:S3-S9. https://doi.org/10.1016/j.jcf.2019.08.016
3.            Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC) [homepage on the Internet]. São Paulo: GBEFC [cited 2022 Feb 1]. Registro Brasileiro de Fibrose Cística 2019. Available from: http://www.gbefc.org.br/ingles/site/pagina.php?idpai=128&id=15
4.            Orenti A, Zolin A, Jung A, van Rens J, et al. ECFSPR Annual Data Report 2019, 2021. Available from: https://www.ecfs.eu/projects/ecfs-patient-registry/annual-reports
5.            Moran A, Brunzell C, Cohen RC, Katz M, Marshall BC, Onady G, et al. Clinical care guidelines for cystic fibrosis-related diabetes: a position statement of the American Diabetes Association and a clinical practice guideline of the Cystic Fibrosis Foundation, endorsed by the Pediatric Endocrine Society. Diabetes Care. 2010;33(12):2697-2708. https://doi.org/10.2337/dc10-1768
6.            Moran A, Pillay K, Becker D, Granados A, Hameed S, Acerini CL. ISPAD Clinical Practice Consensus Guidelines 2018: Management of cystic fibrosis-related diabetes in children and adolescents. Pediatr Diabetes. 2018;19 Suppl 27:64-74. https://doi.org/10.1111/pedi.12732
7.            Mainguy C, Bellon G, Delaup V, Ginoux T, Kassai-Koupai B, Mazur S, et al. Sensitivity and specificity of different methods for cystic fibrosis-related diabetes screening: is the oral glucose tolerance test still the standard?. J Pediatr Endocrinol Metab. 2017;30(1):27-35. https://doi.org/10.1515/jpem-2016-0184
8.            Colombo C, Foppiani A, Bisogno A, Gambazza S, Daccò V, Nazzari E, et al. Lumacaftor/ivacaftor in cystic fibrosis: effects on glucose metabolism and insulin secretion. J Endocrinol Invest. 2021;44(10):2213-2218. https://doi.org/10.1007/s40618-021-01525-4
9.            Prentice BJ, Ooi CY, Verge CF, Hameed S, Widger J. Glucose abnormalities detected by continuous glucose monitoring are common in young children with Cystic Fibrosis. J Cyst Fibros. 2020;19(5):700-703. https://doi.org/10.1016/j.jcf.2020.02.009
10.          Chan CL, Vigers T, Pyle L, Zeitler PS, Sagel SD, Nadeau KJ. Continuous glucose monitoring abnormalities in cystic fibrosis youth correlate with pulmonary function decline. J Cyst Fibros. 2018;17(6):783-790. https://doi.org/10.1016/j.jcf.2018.03.008
11.          Gojsina B, Minic P, Todorovic S, Soldatovic I, Sovtic A. Continuous Glucose Monitoring as a Valuable Tool in the Early Detection of Diabetes Related to Cystic Fibrosis. Front Pediatr. 2021;9:659728. https://doi.org/10.3389/fped.2021.659728
12.          Zorron M, Marson FAL, Morcillo AM, Gonçalves AC, El Beck MS, Ribeiro JD, et al. Can continuous glucose monitoring predict cystic fibrosis-related diabetes and worse clinical outcome?. J Bras Pneumol. 2022;48(2):e20210307.

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