A doação após morte circulatória (DMC), anteriormente conhecida como doação após morte cardíaca ou doação sem batimento cardíaco, refere-se à captação de órgãos para fins de transplante de pacientes cuja morte é diagnosticada e confirmada por critérios cardiorrespiratórios.(1)
Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Reck dos Santos et al.(2) apresentam um artigo de revisão e atualização sobre DMC e transplante pulmonar. A DMC tornou-se uma prática aceita em muitos países e continua sendo foco de intenso interesse na comunidade de transplantes. No entanto, não é uma atividade nova e apresenta alguns aspectos éticos, legais, culturais e econômicos que dificultam sua utilização em alguns países.
Desde o primeiro transplante de rim humano, realizado em 1933 por Yurii Y Voronoy, em Kherson, na Ucrânia,(3) até o final da década de 1960, quase todos os órgãos transplantados de doadores falecidos eram provenientes de doadores sem batimentos cardíacos, com resultados desfavoráveis, principalmente em virtude do dano renal causado pela isquemia quente, mas também em virtude de outros fatores, como técnica cirúrgica não refinada, preservação inadequada, imunossupressão insuficiente e inexperiência no manejo pós-operatório.
Naquela época, apenas Guy Alexandre, cirurgião belga, com base nos estudos de Mollaret & Goulon(4) em Paris e de Wertheimer et al.(5) em Lyon publicados em 1959 — sugerindo que a falha irreversível das funções cerebrais pode ser considerada morte — não só adotou critérios neurológicos para determinar a morte, mas também aplicou esses critérios na realização do primeiro transplante de órgão de doador em morte encefálica em 1963, procedimento que muitos de seus colegas consideraram eticamente inaceitável.(6)
Apenas após o primeiro transplante cardíaco do mundo, realizado em 3 de dezembro de 1967, por Christiaan Barnard na Cidade do Cabo, utilizando o coração de uma jovem com traumatismo cranioencefálico grave após acidente de trânsito e declarada morta por critérios neurológicos,(7) foram publicados o relatório do Comitê Ad Hoc da Harvard Medical School(8) e a Declaração de Sidney, resultado da 22ª Assembléia Médica Mundial,(9) ambos em 1968, para a determinação da morte com base em critérios neurológicos. Desde então, quase todos os centros de transplante abandonaram a utilização de doadores sem batimento cardíaco, utilizando órgãos de doadores em morte encefálica, pois o tempo de isquemia quente próximo a zero proporcionava melhores resultados.
No início da década de 1990, observou-se que o número de potenciais doadores em morte encefálica — 0,5-1,0% das mortes ou 45-65 por milhão de pessoas (pmp) — era insuficiente para atender à crescente demanda de pacientes em lista de espera para transplante de órgãos. Além disso, nos últimos vinte anos, houve uma diminuição da incidência de pacientes com morte encefálica em muitos países desenvolvidos. Na Espanha, por exemplo, comparando-se as taxas de incidência de morte encefálica por meio de auditorias em UTIs entre 2001 e 2010 (65 pmp e 48 pmp, respectivamente), houve queda de 26%, além de um aumento progressivo da média de idade, evidenciando um esgotamento quantitativo e qualitativo de potenciais doadores.(10) A diminuição da incidência de mortes diagnosticadas por critérios neurológicos e, portanto, do potencial de doação após morte encefálica (DME), é sobretudo consequência da melhoria da segurança viária e das melhorias no manejo de cuidados neurocríticos e nos desfechos do traumatismo cranioencefálico agudo e da hemorragia intracraniana.(10,11) Em alguns países, como o Reino Unido, essa taxa sempre foi baixa (30-35 pmp), pois os pacientes com lesão cerebral devastadora não são encaminhados para a UTI, mas sim para os cuidados paliativos.
Em razão do número insuficiente de doadores em morte encefálica para atender à crescente demanda por transplantes, estudos com doadores em morte circulatória foram resumidos durante o Primeiro Congresso Internacional de Doadores Sem Batimento Cardíaco, realizado em Maastricht em 1995, e foi estabelecido um sistema de classificação: I: parada cardíaca irreversível ocorre antes da chegada ao hospital; II: parada cardíaca irreversível ocorre no hospital; III: parada cardiorrespiratória programada na UTI; e IV: parada cardiorrespiratória antes, durante ou após a confirmação da morte encefálica.(12)
A DMC também é classificada como controlada ou não controlada. A DMC não controlada refere-se à captação de órgãos após parada cardíaca inesperada da qual o paciente não pode ou não deve ser ressuscitado (categorias I, II e IV de Maastricht). A DMC controlada refere-se à captação de órgãos após parada cardíaca esperada que se segue à retirada planejada dos tratamentos de suporte de vida considerados sem benefício geral para um paciente gravemente enfermo (categoria III de Maastricht).(13)
Em decorrência da melhor manutenção hemodinâmica, do resfriamento in situ, da rápida retirada de órgãos em bloco, da perfusão pulsátil, de melhores soluções de preservação e, mais recentemente, da utilização de circulação extracorpórea regional, os resultados foram semelhantes aos obtidos com doadores DME, tanto para o rim quanto para outros órgãos, levando a um aumento progressivo do número de DMC, até o ponto em que, em 2020, das 35.368 doações de indivíduos mortos registradas no Observatório Global de Doação e Transplante, 8.061 eram DMC (22,8%).(14) A contribuição da DMC para o número total de doadores falecidos varia internacionalmente. Diferenças nas práticas médicas, nas atitudes públicas, na legislação e nos recursos entre os países influenciam a prática da DMC.
A Figura 1 mostra as taxas de DMC, de acordo com o Registro Internacional de Doação e Transplante de Órgãos,(15) que relatou que 22 países utilizaram DMC em 2020, com as taxas variando de 0,07 pmp (no Japão) a 13,1 pmp (na Espanha). Em alguns países (Reino Unido, Holanda e EUA), foi dada ênfase à DMC controlada, enquanto em outros (Espanha e França),(16) o tipo predominante foi a DMC não controlada.
O senso comum pode sugerir que declarar a morte quando o coração para de bater seria mais direto do que quando a declaração de morte é baseada nas funções do tronco cerebral. No entanto, a dificuldade de introdução da DMC está relacionada a questões éticas e legais e à complexidade técnica e organizacional inerente a esse tipo de doação, o que a torna mais complexa do que pode parecer à primeira vista.
Apesar do endosso da prática da DMC por associações profissionais e órgãos reguladores em muitas partes do mundo, persistem as preocupações éticas e legais tanto sobre a DMC controlada quanto sobre a DMC não controlada. Tais preocupações estão relacionadas à legalidade e aceitabilidade das intervenções antes ou após a morte que são necessárias para facilitar a DMC; ao momento, local e forma de retirada do tratamento; e a incertezas quanto ao momento em que a morte pode ser confirmada por critérios circulatórios. As equipes de captação de órgãos mobilizadas para uma potencial DMC “são desmobilizadas” em 40% das ocasiões, pois alguns potenciais doadores não morrem nas primeiras duas horas após a retirada do suporte de vida, causando o sofrimento da família durante a espera, o que também onera a já pressionada equipe da UTI.(17)
A DMC está se tornando cada vez mais aceita e tem sido realizada em alguns países, contribuindo de forma importante para o número de órgãos disponíveis e proporcionando desfechos pós-transplante aceitáveis. (18) No entanto, a DMC deve ser considerada um complemento e não um substituto para a DME, que, além de apresentar logística mais simples e custos mais baixos, apresenta maior utilização de órgãos transplantados por doador. Outro aspecto importante é que, apesar do grande investimento em DMC, sua taxa está em torno de 5-6 pmp na maioria dos países que utilizam essa forma de doação, sendo que apenas 4 países ultrapassaram 8 pmp (Figura 1).
A justificativa mais importante para a utilização de DMC é o número insuficiente e decrescente de DME para atender à demanda. Em cada país, de acordo com suas particularidades, são definidos o tipo de DMC (controlada, não controlada ou ambas), quais órgãos serão utilizados desses doadores e como barreiras legais, éticas, logísticas, culturais e financeiras serão abordadas.
No Brasil, a DMC não é utilizada para transplante de órgãos, com exceção de um pequeno número de transplantes renais, utilizando parte do sistema de classificação de Maastricht (tipo IV),(12) ou seja, naqueles casos em que a parada cardíaca irreversível ocorre após a determinação da morte encefálica e a autorização da família antes da retirada dos órgãos, enquanto se aguarda o resultado dos exames laboratoriais ou a chegada das equipes para a retirada dos órgãos.
Ao contrário do que se observa em países desenvolvidos, as taxas de morte encefálica são altas e não estão diminuindo no Brasil. Na década de 1990, estimava-se que haveria aproximadamente 60 mortes encefálicas pmp por ano, e apenas um terço delas (cerca de 20 pmp) foram notificadas como potenciais doadores. Essa taxa de notificação de potenciais doadores, que era de 24,8 pmp em 2000, subiu para 54,7 pmp em 2019, ano anterior à pandemia, que teve um impacto negativo nas taxas de doação e transplante. Em alguns estados brasileiros (Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul) e no Distrito Federal, a taxa anual de notificação de casos de morte encefálica está entre 80 e 100 pmp.(19) Portanto, atualmente estimamos que a taxa de morte encefálica esteja entre 90 e 100 pmp no país, o dobro da observada em países desenvolvidos. Portanto, podemos aumentar em 50% a taxa de notificação de potenciais doadores em morte encefálica no Brasil. Além disso, a taxa de efetividade foi de 33% em 2019, e nossa meta é chegar a 45%, o que já ocorreu em alguns estados (Santa Catarina, Paraná e Ceará).(19) Com base nesses dados, podemos estimar que atingiremos uma taxa de DME de 40 pmp (90 indivíduos em morte cerebral pmp e uma taxa de efetividade de 45%) em 7 anos.
É necessário melhorar a utilização de órgãos de doadores em morte encefálica. As taxas estimadas de demanda anual de transplantes e de utilização ideal (em %) dos seguintes órgãos são, respectivamente: rim (70 pmp; 85%); fígado (30 pmp; 80%); coração (8 pmp; 40%); e pulmão (8 pmp; 20%).(20) Em 2019, a taxa geral de doadores efetivos foi de 18,1 pmp — e a faixa de utilização foi de 30,1-71,0% (rim); 10,8-55,0% (fígado); 1,8-10,0% (coração); e 0,5-3,0% (pulmão).(20) Acredita-se que, em 2028, 40 doadores pmp serão suficientes para suprir a necessidade estimada de todos os órgãos, exceto o pulmão, caso as necessidades permaneçam nesses níveis. Portanto, embora a utilização da DMC seja uma estratégia importante e necessária em muitos países, outras medidas menos complexas e mais baratas, como a DME, serão suficientes no Brasil nos próximos anos.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES VDG: desenho, redação e revisão do artigo e aprovação do manuscrito final. PMPF e JM: revisão e aprovação do manuscrito final.
CONFLITO DE INTERESSE Não declarado.
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