Ao comemorarmos o Dia Mundial da Tuberculose em 24 de março, o maior desafio enfrentado no controle da tuberculose é a pandemia de COVID-19.(1) De acordo com o último relatório da OMS, o número de novos casos de tuberculose caiu de 7,1 milhões em 2019 para 5,8 milhões em 2020; o número de casos de tuberculose drogarresistente (TBDR) também diminuiu de 177.100 para 150.359, e o número de pacientes em tratamento preventivo da tuberculose diminuiu de 3,6 milhões para 2,8 milhões.(2) De fato, a Global Tuberculosis Network coordenou um estudo multicêntrico(3) e demonstrou que a pandemia de COVID-19 afetou substancialmente os serviços de tuberculose em muitos países ao redor do mundo. Em 2020, em comparação com 2019, houve uma diminuição geral do número total de casos diagnosticados e tratados de tuberculose ativa, foram tratados menos casos de TBDR e de tuberculose latente, e houve um aumento das consultas via telessaúde/internet.(3)
Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, outro estudo da Global Tuberculosis Network(4) avaliou medidas de lockdown específicas de cada país durante o primeiro ano da pandemia de COVID-19. Embora no período pré-vacinação contra a COVID-19 (isto é, durante as três primeiras ondas da pandemia) as medidas de lockdown tenham sido importantes na redução da transmissão, limitando a pressão sobre os serviços hospitalares e as UTIs, as medidas de saúde pública adotadas para conter a propagação da COVID-19 claramente tiveram impacto no controle da tuberculose.(2,5)
De fato, em uma carta ao editor,(6) os autores mostraram uma redução dos casos confirmados de tuberculose notificados no Brasil em 2020, em comparação com o período de 2017 a 2019. A redução do diagnóstico compromete as metas da OMS para a eliminação da tuberculose. No momento atual e nos próximos anos, o aumento da conscientização sobre a tuberculose será fundamental para o diagnóstico do maior número possível de casos de tuberculose. Nesse sentido, novas ferramentas diagnósticas podem facilitar o rápido diagnóstico da tuberculose. Santos et al.(7) descreveram um modelo de classificação de árvore de decisão para o diagnóstico da tuberculose pleural, incluindo características clínicas e exame celular/bioquímico do líquido pleural. Considerando-se que a tuberculose pleural é a forma extrapulmonar mais frequente de tuberculose e que seu diagnóstico geralmente é difícil em virtude de sua natureza paucibacilar, um modelo preditivo com apenas três variáveis e alta sensibilidade e especificidade que pode ser facilmente utilizado em unidades básicas de saúde é muito vantajoso.
O diagnóstico da infecção latente por tuberculose (ILTB) também foi impactado negativamente pela pandemia de COVID-19.(2) Para atingir a meta da End TB Strategy de reduzir a incidência de tuberculose em 90% por meio do tratamento preventivo da tuberculose,(1) será fundamental intensificar os esforços para diagnosticar e tratar os casos de ILTB. Por esse motivo, alguns indivíduos devem ser altamente priorizados para a realização de teste e tratamento para ILTB. Neste número do Jornal, um estudo prospectivo(8) avaliou a prevalência de ILTB em pacientes com doenças pulmonares intersticiais com necessidade de imunossupressão. Os autores observaram uma prevalência de ILTB de 9,1%, destacando a importância da triagem para ILTB nesse grupo de pacientes.
O diagnóstico e tratamento tardio da tuberculose em virtude da pandemia de COVID-19 podem contribuir para o aumento da carga de tuberculose, inclusive a de tuberculose multirresistente (TBMR), nos próximos anos. A taxa de sucesso do tratamento da TBMR é baixa (aproximadamente 50%), e, portanto, o desenvolvimento de novos medicamentos e esquemas mais curtos poderia melhorar significativamente os desfechos do tratamento da tuberculose.(9) A bedaquilina é um novo medicamento que vem sendo utilizado nos esquemas recomendados pela OMS para o tratamento da TBMR. Hatami et al.(10) realizaram uma revisão sistemática e meta-análise sobre o uso da bedaquilina no tratamento da TBMR. Eles constataram que as taxas de conversão da cultura e de sucesso do tratamento foram altas em esquemas contendo bedaquilina, mesmo em casos de tuberculose extensivamente resistente.
Como estamos vendo um grande número de casos não diagnosticados e não tratados de tuberculose em virtude da pandemia de COVID-19, é possível que esses pacientes, com mais frequência, apresentem sequelas pulmonares causadas pelo diagnóstico e tratamento tardio e/ou pelo desenvolvimento de TBR. Assim, podemos esperar um aumento do número de pacientes com doença pulmonar pós-tuberculose (DPPTB) no futuro. De acordo com os padrões clínicos para avaliação, manejo e reabilitação da DPPTB,(11) esses pacientes devem ser avaliados o mais rápido possível ao final do tratamento da tuberculose. Além disso, é importante conhecer a prevalência e gravidade da DPPTB em diferentes populações. Uma comparação de três coortes, uma do Brasil, uma da Itália e uma do México, foi publicada no Jornal este mês. (12) Demonstrou-se que as três coortes apresentaram resultados variáveis de testes de função pulmonar e que os pacientes com TBR apresentaram doença mais grave. Além do mais, na coorte brasileira, os resultados dos testes de função pulmonar diminuíram ao longo do tempo, reforçando a importância da reabilitação pulmonar nesses pacientes.
Em resumo, nos últimos dois anos temos convivido com a pandemia de COVID-19, testemunhando ondas sucessivas e seus efeitos na saúde global. Atualmente, ainda estamos enfrentando o surgimento de novas variantes e lidando com a síndrome pós-COVID-19. Ao mesmo tempo, podemos ver a COVID-19 atrapalhando o controle da tuberculose, reduzindo o número de diagnósticos de tuberculose e de pacientes em tratamento preventivo da tuberculose. No momento e nos próximos anos, teremos que estar preparados para diagnosticar mais casos de tuberculose e de ILTB e atentos ao possível aumento dos casos de TBMR e de DPPTB.
AGRADECIMENTOS
Este estudo foi realizado no âmbito dos projetos colaborativos da European Respiratory Society (ERS)/Asociación Latinoamericana de Tórax (ALAT) e ERS/Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e do plano de pesquisa operacional do WHO Collaborating Centre for Tuberculosis and Lung Diseases (Tradate, ITA-80, 2017-2020-GBM/RC/LDA), bem como no da Global Tuberculosis Network, organizada pela World Association for Infectious Diseases and Immunological Disorders.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
Todos os autores contribuíram igualmente para a redação e revisão do manuscrito.
CONFLITO DE INTERESSE
Nenhum declarado.
REFERÊNCIAS
1. TB/COVID-19 Global Study Group. Tuberculosis and COVID-19 co-infection: description of the global cohort. Eur Respir J. 2022;59(3):2102538. https://doi.org/10.1183/13993003.02538-2021
2. World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: WHO; c2022 [cited 2022 Mar 10]. Global Tuberculosis Report 2021. 57p. Available from: https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1379788/retrieve
3. Migliori GB, Thong PM, Alffenaar JW, Denholm J, Tadolini M, Alyaquobi F, et al. Gauging the impact of the COVID-19 pandemic on tuberculosis services: a global study. Eur Respir J. 2021;58(5):2101786. https://doi.org/10.1183/13993003.01786-2021
4. Migliori GB, Thong PM, Alffenaar JW, Denholm J, Tadolini M, Alyaquobi F, et al. Country-specific lockdown measures in response to the COVID-19 pandemic and its impact on tuberculosis control: a global study. J Bras Pneumol. 2022; 48(2):e20220087.
5. Migliori GB, Thong PM, Akkerman O, Alffenaar JW, Álvarez-Navascués F, Assao-Neino MM, et al. Worldwide Effects of Coronavirus Disease Pandemic on Tuberculosis Services, January-April 2020. Emerg Infect Dis. 2020;26(11):2709-2712. https://doi.org/10.3201/eid2611.203163
6. Maia CMF, Martelli DRB, Silveira DMML, Oliveira EA, Martelli Jr H. Tuberculosis in Brazil: the impact of the COVID-19 pandemic. J Bras Pneumol.2022;48(2):e20220082.
7. Santos AP, Ribeiro-Alves M, Corrêa R, Lopes I, Silva MA, Mafort TT, et al. Hyporexia and cellular/biochemical characteristics of pleural fluid as predictive variables on a model for pleural tuberculosis diagnosis. J Bras Pneumol. 2021;48(2):e20210245.
8. Dias VL, Storrer KM. Prevalence of latent tuberculosis infection among patients with interstitial lung disease requiring immunosuppression. J Bras Pneumol.2022;48(2):e20210382.
9. Silva DR, Mello FCQ, Migliori GB. Shortened tuberculosis treatment regimens: what is new?. J Bras Pneumol. 2020;46(2):e20200009. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200009
10. Hatami H, Sotgiu G, Bostanghadiri N, Abadi SSD, Mesgarpour B, Goudarzi H, et al. Bedaquiline-containing regimens and multidrug-resistant tuberculosis: a systematic review and meta-analysis. J Bras Pneumol. 2022; 48(2):e20210384.
11. Migliori GB, Marx FM, Ambrosino N, Zampogna E, Schaaf HS, van der Zalm MM, et al. Clinical standards for the assessment, management and rehabilitation of post-TB lung disease. Int J Tuberc Lung Dis. 2021;25(10):797-813. https://doi.org/10.5588/ijtld.21.0425
12. Silva DR, Freitas AA, Guimarães AR, D’Ambrosio L, Centis R, Muñoz-Torrico M, et al. Post-tuberculosis lung disease: a comparison of Brazilian, Italian, and Mexican cohorts. J Bras Pneumol. 2022; 48(2):e20210515.