AO EDITOR, O tabagismo é a principal causa de morte evitável em todo o mundo,(1) respondendo por cerca de 6% da carga global de doenças.(2) Desde a publicação do primeiro relatório da OMS sobre a epidemia do tabaco em 2008, muito progresso foi feito no enfrentamento da epidemia global do tabagismo.(1) Mesmo assim, o tabagismo ainda é responsável por cerca de oito milhões de mortes anualmente(3) e por um custo anual para a economia global de US$ 1,4 trilhão.(1)
Em grupos específicos, como as populações indígenas, pouco se sabe sobre a prevalência do tabagismo, seja ele tradicional ou industrializado, e suas consequências para a saúde do sistema respiratório. O uso do cachimbo tradicional difere do uso do cachimbo industrializado tanto em termos de composição química quanto em termos da cosmologia envolvida no consumo das substâncias.(4)
O objetivo do presente estudo foi descrever a saúde respiratória em homens e mulheres da tribo indígena Fulni-ô, usando parâmetros de função pulmonar e sua associação com o uso do cachimbo tradicional nessa comunidade.
Trata-se de um estudo transversal cujos participantes eram moradores da aldeia indígena Fulni-ô no município de Águas Belas (PE), em uma região de transição entre o agreste e o sertão do estado.(5) Na cosmologia do povo indígena Fulni-ô, o uso da xanduca, cachimbo tradicional para fumar ervas naturais provenientes da caatinga brasileira (por exemplo, jurema, alecrim de caboclo, amecla, entre outras), tem um caráter religioso associado à prevenção de doenças.(6)
Os critérios de inclusão foram homens e mulheres acima de 30 anos de idade. Os critérios de exclusão foram indivíduos com insuficiência cardíaca clinicamente manifesta, aqueles com histórico de evento coronariano agudo que resultou em hospitalização, aqueles com insuficiência renal em diálise, aqueles com histórico de procedimentos cirúrgicos cardíacos ou arteriais periféricos e aqueles com histórico de doença cerebrovascular com necessidade de hospitalização.
Este estudo complementar incluiu todos os participantes do Projeto de Aterosclerose nas Populações Indígenas (PAI) recrutados na aldeia Fulni-ô que aceitaram se submeter a avaliação respiratória por meio da espirometria. Foram excluídos do estudo os indivíduos que faziam ou fizeram uso de cigarros industrializados, aqueles que relataram tosse no momento da coleta de dados e aqueles que apresentavam diagnóstico de outra doença respiratória. Nenhum indígena Fulni-ô afirmou nunca ter feito uso de tabaco neste estudo.
Foram analisadas variáveis sociodemográficas, antropométricas e clínicas: sexo, idade, escolaridade, altura (cm), IMC, frequência diária de uso do cachimbo (vezes/dia), tempo de uso do cachimbo (anos), carga tabágica (anos-cachimbo), SpO2, proporção de usuários de fogão a lenha, dispneia autorreferida e fatores de risco para doenças cardiovasculares (hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia). Foram realizadas medidas antropométricas, e, após um período de repouso, foram registradas a pressão arterial (três medições em ambos os braços), frequência cardíaca e oximetria.
A carga tabágica foi medida como o número de vezes que o usuário encheu o cachimbo tradicional (xanduca) e foi calculada como o número de vezes que o cachimbo foi usado por dia multiplicado pelo tempo de uso do cachimbo, em anos.
A função pulmonar foi medida com um espirômetro portátil Micro Quark (Cosmed; Pavona di Albano, Itália), em conformidade com os critérios estabelecidos pela American Thoracic Society.(7) Todos os participantes receberam instruções sobre como realizar o teste e tentaram até seis manobras expiratórias forçadas, sem tossir e sem o uso de broncodilatadores. Os participantes permaneceram sentados e usaram um clipe nasal. As três melhores medidas foram consideradas para a análise. O espirômetro foi calibrado com uma seringa de três litros, antes do uso, todos os dias.
Foram coletados os seguintes parâmetros respiratórios: CVF, VEF1, relação VEF1/CVF, PFE e FEF25-75%. Todas as variáveis também foram avaliadas como porcentagem do previsto para a população brasileira.(8) Para fins de comparação da função pulmonar, os indivíduos foram divididos em dois grupos (acima e abaixo da mediana de carga tabágica de 169,5 anos-cachimbo). O teste t e o teste do qui-quadrado foram usados para avaliar as diferenças relacionadas ao sexo na análise univariada. As análises foram realizadas com o pacote estatístico Stata, versão 10 (StataCorp LP, College Station, TX, EUA). Este estudo foi aprovado pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa sob o número de catálogo 48235615.9.0000.5196.
Incluímos um total de 116 participantes da tribo Fulni-ô, sendo que 114 (98,3%) eram fumantes ativos de cachimbo tradicional. A média de idade foi de 56,3 ± 11,0 anos, e a média do IMC foi de 27,7 ± 4,5 kg/m2, sem diferenças entre os sexos. A média de frequência diária do uso do cachimbo foi de 6,2 ± 5,7 vezes/dia, o tempo de uso do cachimbo atingiu quatro décadas (39,8 ± 15,1 anos), e a média de carga tabágica foi de 261,3 ± 271,3 anos-cachimbo. É importante ressaltar que 41% e 60% dos homens e mulheres Fulni-ô, respectivamente, começaram a fumar antes dos 15 anos de idade. O uso de fogão a lenha foi referido por 11 indivíduos (9,5%; Tabela 1).
Na amostra total, 60 mulheres (8,6%) e 8 homens (17,4%) apresentaram VEF1 abaixo de 80% do previsto. Por outro lado, 34 mulheres (48,6%) e 20 homens (43,5%) apresentaram valores de VEF1 acima de 100% do previsto. Além disso, os valores de VEF1 (em L) e CVF (em L) foram maiores no grupo com carga tabágica abaixo da mediana. Possíveis distúrbios restritivos foram encontrados em 5 (10,9%) e 7 (10,0%) dos homens e mulheres, respectivamente (Tabela 1).
Nesta análise complementar do estudo PAI, mostramos pela primeira vez na literatura que o uso do cachimbo tradicional xanduca tem alta prevalência na comunidade indígena Fulni-ô. São poucas as publicações que tratam dos efeitos deletérios associados a esse uso. Em um estudo realizado em comunidades rurais da Ásia que fazem uso de cigarros tradicionais enrolados à mão (bidis), observou-se alta prevalência de sintomas cardiorrespiratórios entre aqueles que eram fumantes pesados, que também apresentaram menor capacidade ventilatória e maior obstrução ao fluxo aéreo do que aqueles que não o eram.(9)
Embora uma maior prevalência de tabagismo entre homens tenha sido descrita em ambientes urbanos,(1,3) as relações entre tradição e uso do cachimbo tradicional na tribo Fulni-ô parecem influenciar a elevada prevalência que descrevemos em ambos os sexos. A alta prevalência do uso do cachimbo tradicional (xanduca) entre os indígenas Fulni-ô pode, em parte, ser explicada pelo fato de que o uso do cachimbo tradicional nas comunidades indígenas se dá não apenas como parte de suas tradições, mas também como uma prática que os aproxima de suas divindades por meio dos rituais próprios de cada povo.(6,10)
A exposição prolongada ao uso da xanduca descrita em nosso estudo indica que os indígenas Fulni-ô têm o hábito de fumar desde a infância.(10) Pouco se sabe sobre os efeitos da exposição à fumaça da xanduca em crianças, principalmente no contexto das tradições indígenas.
Fatores genéticos que protegem contra os danos causados pelo uso da xanduca podem estar presentes na comunidade Fulni-ô, que é a comunidade indígena menos urbanizada do Nordeste do Brasil. A pressão da seleção natural da exposição contínua ao uso intenso da xanduca ao longo de muitos anos pode ter moldado a genética favorável dessa população. Outro fator que merece destaque diz respeito ao fato de que os usuários de cachimbo tendem a não inalar a fumaça, o que significa que inalam ativamente menos fumaça do que os fumantes de cigarro.(11)
Em conclusão, descrevemos a elevada prevalência de uso intenso do cachimbo tradicional (xanduca) em homens e mulheres indígenas da comunidade Fulni-ô, que muitas vezes se inicia na infância. Parâmetros de função pulmonar desfavoráveis foram predominantes nos homens em comparação com as mulheres. Além disso, os valores de VEF1 (em L) e CVF (em L) foram maiores no grupo com carga tabágica abaixo da mediana.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES VCP, DC, AAC, ACA, JM, DMFOA, RMPV, PVAMP e JACL: concepção e desenho da pesquisa; análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual. VCP, ACA e JM: aquisição dos dados. VCP, ACA, DC, PVAMP e CDFS: análise estatística. VCP, ACA, AAC, JM, DMFOA e CDFS: redação e revisão do manuscrito. Todos os autores: aprovação da versão final.
CONFLITO DE INTERESSE Não declarado.
REFERÊNCIAS 1. World Health Organization (WHO) [homepage on the Internet]. Geneva: WHO; c2021 [cited 2021 Oct 26]. WHO Report on the Global Tobacco Epidemic, 2021: Addressing New and Emerging Products. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/343287
2. Ezzati M, Riboli E. Behavioral and dietary risk factors for noncommunicable diseases. N Engl J Med. 2013;369(10):954-964. https://doi.org/10.1056/NEJMra1203528
3. GBD 2019 Risk Factors Collaborators. Global burden of 87 risk factors in 204 countries and territories, 1990-2019: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2019. Lancet. 2020;396(10258):1223-1249. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30752-2
4. Nadeau M, Blake N, Poupart J, Rhodes K, Forster JL. Circles of Tobacco Wisdom: learning about traditional and commercial tobacco with Native elders. Am J Prev Med. 2012;43(5 Suppl 3):S222-S228. https://doi.org/10.1016/j.amepre.2012.08.003
5. Schröder P. Cultura, Identidade e Território No Nordeste Indígena: Os Fulni-ô. Recife: Editora Universitária UFPE; 2012.
6. Braga PCR. Corpo, saúde e reprodução Entre os índios Fulni-ô Monograph on the Internet]. Recife: UFPE; 2010 [cited 2021 Oct 26]. Available from: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/31334
7. Graham BL, Steenbruggen I, Miller MR, Barjaktarevic IZ, Cooper BG, Hall GL, et al. Standardization of Spirometry 2019 Update. An Official American Thoracic Society and European Respiratory Society Technical Statement. Am J Respir Crit Care Med. 2019;200(8):e70-e88. https://doi.org/10.1164/rccm.201908-1590ST
8. Pereira CA, Sato T, Rodrigues SC. New reference values for forced spirometry in white adults in Brazil. J Bras Pneumol. 2007;33(4):397-406. https://doi.org/10.1590/S1806-37132007000400008
9. Duong M, Rangarajan S, Zhang X, Killian K, Mony P, Swaminathan S, et al. Effects of bidi smoking on all-cause mortality and cardiorespiratory outcomes in men from south Asia: an observational community-based substudy of the Prospective Urban Rural Epidemiology Study (PURE). Lancet Glob Health. 2017;5(2):e168-e176. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(17)30004-9
10. Diaz JH. A constituição da identidade étnica dos Fulni-ô do nordeste brasileiro. Rev AntHropologicas. 2013;24(2):75-112.
11. McCormack VA, Agudo A, Dahm CC, Overvad K, Olsen A, Tjonneland A, et al. Cigar and pipe smoking and cancer risk in the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC). Int J Cancer. 2010;127(10):2402-2411. https://doi.org/10.1002/ijc.25252