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Cartas ao Editor

Tuberculose: uma doença mortal e negligenciada na era da COVID-19.

Tuberculosis: a deadly and neglected disease in the COVID-19 era

Ethel L Maciel1,2, Jonathan E. Golub3, Jose Roberto Lapa e Silva1,4, Richard E. Chaisson3

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220056

AO EDITOR,
 
Em 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a Tuberculose (TB) uma emergência global. Desde então, foram registrados poucos avanços referentes ao controle da doença, como ferramentas de diagnóstico molecular e novos esquemas de redução do tratamento, mas a falta geral de progresso se deve principalmente a investimentos insuficientes na Pesquisa & Desenvolvimento de novos produtos e estratégias para a prevenção, diagnóstico e tratamento da TB.1
 
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e o Plano Global para Acabar com a TB da Organização Mundial da Saúde afirmam que o financiamento para a tuberculose precisa se aproximar da meta de US$2 bilhões por ano para acabar com a doença até 2030.  No entanto, essa meta nunca foi alcançada, como foi relatado pelo Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) em seu recente relatório de investimento, em que o valor mais próximo foi de US$772 milhões em 2017.2
 
Em contraste, em 2020, o mundo enfrentou uma pandemia de enorme magnitude que mudou a maneira como vivemos nossas vidas, impactando consideravelmente os sistemas globais econômicos e de saúde. Desta forma, a OMS declarou a COVID-19 uma emergência de saúde global dentro de dois meses após o reconhecimento dos primeiros casos, e grandes economias rapidamente mobilizaram fundos de pesquisa para desenvolver vacinas e medicamentos que pudessem controlar a pandemia. O financiamento dedicado ao combate à COVID-19 ultrapassou US$21,7 trilhões, segundo análise de dados disponível na plataforma de financiamento Devex.3-5
 
Embora haja uma diferença marcante na dimensão dos investimentos entre as duas doenças, o número de mortes foi semelhante em 2020: 1,5 milhões devido à TB (incluindo 214 mil pessoas vivendo com HIV) e 1,8 milhões devido à COVID-19, conforme relatado pela OMS. O número de óbitos em 2021 ainda está sendo calculado, embora seja provável que ocorra um excesso de mortes relacionadas a ambas as doenças devido às variantes mais transmissíveis e virulentas do SARS-CoV-2 e, no caso da tuberculose, ao impacto da COVID-19 no acesso aos serviços de saúde, resultando em atrasos no diagnóstico.6,7
 
Assim, a discrepância de fundos que ainda enfrentamos não está relacionada à magnitude do número de óbitos devido às duas doenças, mas sim ao local onde essas mortes estão ocorrendo e quais populações são afetadas. Embora a COVID-19 tenha um alcance amplo, afetando países ricos e em desenvolvimento, a tuberculose continua sendo uma doença negligenciada, que afeta predominantemente os países mais pobres e suas populações mais vulneráveis.
 
No Brasil, conforme relatado pelo GAT, o financiamento para a TB não atingiu 0,1% do valor total alocado para a ciência e tecnologia em todas as áreas, que representa uma expectativa de US$35 milhões por ano. O Brasil investiu apenas US$1.196.598 em 2019. Em 2020, esse financiamento aumentou, atingindo um total de US$3.726.864, o que representa 11% da meta de US$35 milhões. No Portal de Transparência do governo brasileiro, o valor total investido nos últimos dez anos na pesquisa da TB foi de pouco mais de US$6 milhões.2
 
Conforme demonstrado na Tabela 1, o montante destinado à pesquisa da TB no Brasil pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência brasileira de fomento à pesquisa, foi irrisório. A maior parte dos recursos vem dos sistemas de gestão financeira e convênios do governo federal (SICONV e GESCON). O SICONV promove repasses financeiros aos estados para o cumprimento de financiamentos conjuntos entre o CNPq e fundações estaduais de pesquisa, bem como recursos parlamentares, enquanto o GESCON é o sistema que repassa recursos a instituições federais de pesquisa. É possível que outras transferências não tenham sido informadas; no entanto, a Tabela 1 inclui exatamente o que é informado e relatado pelo governo federal.


 
Por outro lado, o financiamento para a pesquisa da COVID-19 em 2020, segundo o governo brasileiro, foi da ordem de US$100 milhões, número ainda muito aquém do desejado, dada a magnitude da pandemia.8
 
Em um editorial de R. E. Chaisson, M. Frick e P. Nahid, duas grandes diferenças na resposta às duas pandemias são notáveis, considerando que o Mycobacterium tuberculosis foi descrito pela primeira vez em 1882 e o SARS-CoV-2 em 2019. Primeiramente, existem atualmente apenas 15 vacinas candidatas contra a TB em preparação em comparação com 112 vacinas para a COVID-19, e temos apenas uma vacina licenciada em uso para TB, a vacina BCG (que significa vacina Bacillus Calmette-Guérin), enquanto existem 25 vacinas licenciadas para COVID-19. Em segundo lugar, apenas um total de US$915 milhões foi investido na pesquisa da TB em 2020, em comparação com US$104 bilhões para COVID-19 no mesmo período,9 ou seja, 113 vezes mais do que o valor gasto por todos os financiadores em pesquisas com TB em 2020 (US$915 milhões).
 
A COVID-19 e a tuberculose são doenças diferentes com impactos distintos na saúde pública, exigindo ações diferenciadas dos governos; no entanto, também está claro que, sem investimentos adequados, a inovação para o controle de qualquer doença permanece bastante limitada.
 
A lição que pode ser aprendida com o rápido enfrentamento da pandemia da COVID-19 é que, com a vontade política, os investimentos necessários para controlar as doenças pandêmicas podem ser alcançados, como estamos vendo em todo o mundo desenvolvido. Como a tuberculose é um problema de diferentes dimensões, especialmente para os países que compõem o bloco BRICS, é fundamental que esses países que sofrem o maior ônus contribuam para acelerar suas capacidades de pesquisa e inovação.
 
Além disso, os investimentos em ciência devem reduzir o ônus de doenças nas populações mais vulneráveis, como as pessoas que vivem em favelas, privadas de sua liberdade, coinfectadas com HIV/AIDS, indígenas e moradores de rua, que correm maior risco de desenvolver TB, com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais.1,10
 
Por fim, precisamos continuar lutando para que a TB esteja na agenda política e receba financiamento adequado, especialmente nos países mais onerados, como o Brasil, para que a meta de eliminação da TB seja alcançada.
 
CONTRIBUIÇÕES DO AUTORES
 
ELM, JEG, JRLS e REC participaram na concepção, planejamento, interpretação e escrita desta carta ao editor. Todos os autores aprovaram a versão final para publicação.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            United Nations [homepage on the Internet]. New York: Deliberations of the 73rd session. Political declaration of the high-level meeting of the General Assembly on the fight against tuberculosis. Disponível em:  http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/73/3.
2.            Treatment Action Group [homepage on the Internet]. 2020 Report on TB Research Funding Trends. Disponível em: https://www.treatmentactiongroup.org/resources/tbrd-report/tbrd-report-2020/.
3.            Munyaradzi Makoni. Global funding for tuberculosis research hits all-time high. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-018-07708-z.
4.            The Global Fund [homepage on the Internet]. Resource Mobilization. Disponível em: https://www.theglobalfund.org/en/replenishment/.
5.            Devex [homepage on the Internet]. Interactive: Who’s funding the COVID-19 response and what are priorities? Disponível em: https://www.devex.com/news/interactive-who-s-funding-the-covid-19-response-and-what-are-the-priorities-96833.
6.            Pan American Health Organization [homepage on the Internet]. TB deaths rise for the first time in more than a decade due to the COVID-19 pandemic. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/14-10-2021-mortes-por-tuberculose-aumentam-pela-primeira-vez-em-mais-uma-decada-devido. 
7.            World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: The true death toll of COVID-19: estimating global excess mortality. Disponível em: https://www.who.int/data/stories/the-true-death-toll-of-covid-19-estimating-global-excess-mortality.
8.            Marques F. O esforço de cada um. Pesquisa FAPESP [issue on the Internet]. 2020 Jul [cited 2022 Feb 01]; 293: 38-41. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/o-esforco-de-cada-um/.
9.            Chaisson RE, Frick M, Nahid P. The scientific response to TB - the other deadly global health emergency. Int J Tuberc Lung Dis. 2022 Mar 1;26(3):186-189. https://doi.org/10.5588/ijtld.21.0734.
10.          Walter KS, Martinez L, Arakaki-Sanchez D, Sequera VG, Estigarribia Sanabria G, Cohen T et al. The escalating tuberculosis crisis in central and South American prisons. Lan-cet. 2021 Apr 24; 397(10284):1591-1596. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32578-2.

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