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Meta-análise

Uso de anticoagulantes em pacientes com COVID-19: revisão sistemática “viva” e meta-análise

Use of anticoagulants in patients with COVID-19: a living systematic review and meta-analysis

Diane R Batista1, Idevaldo Floriano2, Antonio Silvinato3, Hélio A Bacha4, Alexandre N Barbosa5, Suzana E Tanni1, Wanderley M Bernardo6

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220041

ABSTRACT

Objective: To answer questions related to the use of anticoagulants in the treatment of COVID-19 patients. Methods: This was a systematic review and meta-analysis of phase 3 randomized controlled trials comparing the use of anticoagulants in non-hospitalized and hospitalized COVID-19 patients. We searched the following databases: MEDLINE, EMBASE, the Cochrane Central Register of Controlled Trials, and ClinicalTrials.gov from their inception to January 22, 2022. The risk of bias was assessed by the Cochrane risk-of-bias tool, and the quality of evidence was assessed by the Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation system. Results: A total of 401 studies were initially selected. Of those, 9 met the inclusion criteria and were therefore analyzed (a total of 6,004 patients being analyzed). In non-hospitalized COVID-19 patients, no significant difference was found between post-discharge prophylactic anticoagulation and no intervention regarding venous thromboembolism or bleeding at 30 days. In hospitalized COVID-19 patients, full anticoagulation resulted in a slight reduction in thrombotic events at 30 days (risk difference, -0.03; 95% CI, -0.06 to -0.00; p = 0.04; I2 = 78%), the quality of evidence being moderate. However, no significant difference was found between full anticoagulation and no intervention regarding the risk of major bleeding, the quality of evidence being very low. No significant difference was found between intermediate- and standard-dose prophylactic anticoagulation (risk difference, -0.01; 95% CI, -0.07 to 0.06; p = 0.81; I2 = 0%), the quality of evidence being very low. Conclusions: Therapeutic anticoagulation appears to have no effect on mortality in COVID-19 patients, resulting in a slight reduction in venous thromboembolism in hospitalized patients.

Keywords: Anticoagulants; COVID-19; SARS-CoV-2.

RESUMO

Objetivo: Responder a perguntas relacionadas ao uso de anticoagulantes no tratamento de pacientes com COVID-19. Métodos: Revisão sistemática e meta-análise de ensaios clínicos controlados randomizados de fase 3 comparando o uso de anticoagulantes em pacientes com COVID-19 não hospitalizados e hospitalizados. Os bancos de dados MEDLINE, EMBASE, Cochrane Central Register of Controlled Trials e ClinicalTrials.gov foram investigados desde sua criação até 22 de janeiro de 2022. O risco de viés foi avaliado pela ferramenta de risco de viés da Cochrane, e a qualidade das evidências foi avaliada pelo sistema Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation. Resultados: Inicialmente foram selecionados 401 estudos. Destes, 9 preencheram os critérios de inclusão e, portanto, foram analisados (num total de 6.004 pacientes analisados). Em pacientes com COVID-19 não hospitalizados, não se observou diferença significativa entre anticoagulação profilática pós-alta e nenhuma intervenção no que tange a tromboembolismo venoso ou sangramento em 30 dias. Em pacientes com COVID-19 hospitalizados, a anticoagulação plena resultou em ligeira redução de eventos trombóticos em 30 dias (diferença de risco: −0,03; IC95%: −0,06 a −0,00; p = 0,04; I2 = 78%); a qualidade das evidências foi moderada. No entanto, não se observou diferença significativa entre anticoagulação plena e nenhuma intervenção quanto ao risco de sangramento maior; a qualidade das evidências foi muito baixa. Não se observou diferença significativa entre anticoagulação profilática com dose intermediária e dose-padrão (diferença de risco: −0,01; IC95%: −0,07 a 0,06; p = 0,81; I2 = 0%); a qualidade das evidências foi muito baixa. Conclusões: A anticoagulação terapêutica parece não ter efeito na mortalidade em pacientes com COVID-19, resultando em ligeira redução do tromboembolismo venoso em pacientes hospitalizados.

Palavras-chave: Anticoagulantes; COVID-19; SARS-CoV-2.

INTRODUÇÃO
 
Quase dois anos após o surgimento da COVID-19, esforços têm sido feitos para controlar a gravidade da progressão da doença e reduzir o risco de morte. Relatórios da Organização Mundial da Saúde confirmam que, em 12 de dezembro de 2021, já haviam sido relatados globalmente quase 269 milhões de casos confirmados e quase 5,3 milhões de mortes.(1)
 
A fusão da membrana viral com a membrana celular do hospedeiro em células epiteliais alveolares pulmonares permite a replicação viral, com progressão inflamatória local e sistêmica. A liberação de citocinas sistêmicas características da tempestade de citocinas pode aumentar o dano pulmonar cíclico, incluindo o dano alveolar difuso, e causar SDRA.(2) A SDRA está associada à lesão da barreira epitelial/endotelial que aumenta o influxo de células inflamatórias, como se demonstrou em autópsias de pacientes com dano endotelial grave e vírus intracelulares, ruptura de membranas celulares, infiltração de espaços aéreos, edema intersticial e edema pulmonar.(2) Concomitantemente, a ativação da coagulação e o consumo de fatores de coagulação aumentam o risco de coagulopatia e formação de microtrombos, contribuindo para uma alta incidência de eventos trombóticos.(3) Portanto, em pacientes com COVID-19 grave, o risco de morte é alto e a sepse viral é potencialmente fatal em virtude da falência de múltiplos órgãos.
 
A COVID-19 está associada a um risco aumentado de tromboembolismo venoso (TEV); isso pode ocorrer em 20% dos pacientes e afeta principalmente aqueles com doença muito grave.(4) Portanto, a maioria das diretrizes recomenda que se avalie o risco de TEV por meio de modelos de estratificação e profilaxia.(3) No entanto, há dúvidas a respeito de como escolher a melhor dose de quimioprofilaxia, ou mesmo se a anticoagulação completa é capaz de reduzir o TEV ou o tromboembolismo arterial (TEA) em comparação com uma dose profilática.
 
Em uma revisão sistemática da Cochrane publicada antes da publicação de um ensaio clínico controlado randomizado (ECR),(5) foram fornecidas informações descritivas a respeito dos efeitos dos anticoagulantes na COVID-19. No entanto, outras revisões sistemáticas não consideraram nem os subgrupos de gravidade da COVID-19 nem as doses dos medicamentos administrados, e a maioria incluiu estudos observacionais retrospectivos.(6-8) Portanto, nosso objetivo principal foi avaliar o efeito da anticoagulação na COVID-19 de gravidade variável, além de avaliar a mortalidade, TEV, TEA e sangramento maior associados à anticoagulação nesses pacientes.
 
MÉTODOS
 
Esta revisão sistemática foi realizada em conformidade com as recomendações Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses.(9)
 
Critérios de elegibilidade
 
O protocolo do estudo seguiu a metodologia Patients of interest, Intervention to be studied, Comparison of interventions, and Outcome of interest (PICO, isto é, população, intervenção a ser estudada, comparação de intervenções e desfecho). Com o uso de anticoagulantes como principal ponto de estudo, a estrutura PICO foi a seguinte: pacientes: pacientes adultos com COVID-19; intervenção: uso de anticoagulantes; comparação: comparação entre o tratamento-padrão e placebo; desfecho: taxa de mortalidade por qualquer causa em 30 dias, sangramento ou sangramento maior e TEA (TEA-infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral não hemorrágico, eventos adversos graves nos membros e morte cardiovascular) ou TEV em 30 dias.
 
Foram incluídos todos os ECR de fase 3 sobre o tema. Não foram impostas restrições quanto à data de publicação, idioma ou disponibilidade do texto integral. O protocolo do estudo foi registrado no International Prospective Register of Systematic Reviews (Registro n. CRD42021289669).
 
Como se trata de uma revisão sistemática “viva”, buscaremos novos ECR a cada seis meses e acrescentaremos novas informações a esta revisão sistemática.
 
Fontes de informação e estratégia de busca
 
Dois dos autores elaboraram estratégias de busca que foram revistas e aprovadas pelo grupo de pesquisa; selecionaram fontes de informação e realizaram buscas sistemáticas nos seguintes bancos de dados: MEDLINE, EMBASE, Cochrane Central Register of Controlled Trials e ClinicalTrials.gov. Foram empregadas as seguintes estratégias de busca: (“COVID-19” OR “COVID” OR “coronavirus” OR “SARS-CoV-2”) AND (“anticoagulant” OR “anticoagulation” OR “ agents anticoagulant”) AND (“indirect thrombin inhibitors” OR “enoxaparin” OR “fondaparinux” OR “heparin” OR “warfarin”) AND (therapy/narrow [filter] OR prognosis/narrow [filter] OR comparative study OR comparative studies); e (COVID-19 OR COVID OR CORONAVIRUS OR SARS-CoV-2) AND (anticoagulant).
 
Seleção de estudos
 
Dois pesquisadores selecionaram e extraíram, de forma independente, dados dos estudos incluídos. Primeiro, os artigos foram selecionados por título e resumo. Em seguida, os artigos selecionados foram lidos na íntegra para decidir se deveriam ser incluídos ou excluídos; as divergências foram resolvidas por consenso ou após discussão com um terceiro pesquisador.
 
Coleta de dados e desfechos investigados
 
Dados referentes à autoria, ano de publicação, descrição dos pacientes, intervenções (uso de anticoagulantes e tratamento-padrão), números absolutos de desfechos e tempo de acompanhamento foram extraídos dos estudos de forma independente por dois pesquisadores, e os valores extraídos foram comparados.
 
Risco de viés e qualidade das evidências
 
O risco de viés dos ECR e outros dados importantes foram avaliados por meio da ferramenta de risco de viés da Cochrane para ensaios randomizados (RoB 2)(10,11) e expressos da seguinte maneira: muito grave, grave ou não grave. O risco de viés foi avaliado por dois revisores independentes, e as divergências foram resolvidas por meio de discussão com um terceiro revisor. A qualidade das evidências foi extrapolada a partir do risco de viés e descrita por meio da terminologia Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE),(12) da seguinte maneira: muito baixa, baixa ou alta; para meta-análises, o programa GRADEpro Guideline Development Tool(13) descreve a qualidade das evidências como sendo muito baixa, baixa, moderada ou alta.
 
Síntese dos resultados e análise
 
Os desfechos categóricos foram expressos por grupo (uso de anticoagulantes ou tratamento-padrão), número de eventos e risco calculado (em %) para cada grupo (por meio da divisão do número de eventos pelo total de pacientes em cada grupo). Quando a diferença de risco (DR) entre os grupos foi significativa, o IC95% foi expresso com base no número necessário para tratar (NNT) ou no número necessário para prejudicar. Analisamos ECR separados avaliando pacientes ambulatoriais e pacientes hospitalizados ou anticoagulação plena e doses profiláticas intermediárias. Também analisamos os subgrupos de pacientes com COVID-19 moderada (pacientes que não foram internados na UTI) e COVID-19 grave (pacientes que foram internados na UTI).
 
Usamos meta-análise de efeitos fixos ou aleatórios para avaliar o efeito do uso de anticoagulantes vs. tratamento-padrão nos desfechos quando esses dados estavam disponíveis em pelo menos dois ECR. Os efeitos foram relatados em forma de DR e IC95%; os IC95% que incluíram 0 indicaram que não houve diferença entre os braços anticoagulante e tratamento-padrão quanto ao efeito dos desfechos. As DR mostram o tamanho do efeito absoluto na meta-análise em comparação com o risco relativo ou a razão de chances, e essa técnica pode ser usada quando o desfecho binário for zero em ambos os braços do estudo. A heterogeneidade dos estudos quanto aos efeitos foi quantificada pelo coeficiente I2 (I2 > 50% indica alta heterogeneidade). Para a meta-análise, usamos o programa Review Manager, versão 5.4 (RevMan 5; Cochrane Collaboration, Oxford, Reino Unido).
 
RESULTADOS
 
Foram identificados 401 estudos nos bancos de dados selecionados. Após a eliminação de duplicatas e a inclusão de estudos que preenchiam os critérios de elegibilidade, 11 estudos foram selecionados para a avaliação do texto integral. Destes, foram excluídos 2 (Figura 1). Portanto, 9 ECR foram incluídos na presente revisão sistemática e meta-análise.(14-22) As características dos estudos, o risco de viés e a qualidade das evidências são apresentados nas Tabelas 1 e 2, bem como nas Tabelas S1-S3.






 
A população do estudo foi composta por 6.004 pacientes com COVID-19 leve a grave. Destes, 3.037 receberam anticoagulantes e 2.967 receberam o tratamento-padrão ou placebo. Quando a população do estudo foi estratificada por hospitalização por COVID-19, os pacientes pós-alta foram representados em 1 ECR com 160 pacientes no grupo placebo e 160 no grupo profilático.(22) Foram incluídos 8 ECR com pacientes hospitalizados com doença moderada a grave, estratificados por tipo de anticoagulação: anticoagulação plena vs. tratamento-padrão e dose profilática intermediária vs. tratamento-padrão.(14-21)
 
No que tange ao risco de viés dos ECR,(14-22) 4 apresentaram randomização e alocação cega com risco de viés.(15,17,20,22) Além disso, apenas 1 ECR apresentou cegamento duplo,(21) ao passo que os demais apresentaram cegamento simples, sem cegamento da avaliação dos desfechos em 8.(14-20,22) Cinco ECR usaram desfechos combinados.(16-19,22) Um estudo não relatou as características basais, impedindo assim que se demonstrasse a semelhança entre os grupos para comparação.(21) Um estudo não descreveu o cálculo do tamanho da amostra,(15) e um não usou a análise por intenção de tratar(21); todos estes foram considerados riscos de viés (Tabela 2). Portanto, o risco global de viés foi considerado moderado.
 
Pacientes com COVID-19 não hospitalizados
 
Um ECR(22) foi incluído na análise de pacientes com COVID-19 não hospitalizados. No estudo em questão, os pacientes com COVID-19 foram, no dia da alta hospitalar, aleatoriamente selecionados para receber rivaroxabana 10 mg (tromboprofilaxia estendida) ou nenhuma intervenção farmacológica após 35 dias. Esses pacientes apresentavam alto risco de TEV. Para definir essa população, os autores usaram um escore IMPROVE (do inglês International Medical Prevention Registry on Venous Thromboembolism) de risco de TEV > 4 ou = 2/3 com dímero D elevado (> 500 ng/mL ou o dobro do valor basal). O desfecho primário foi uma combinação dos seguintes: TEV sintomático; morte por TEV; TEV assintomático detectado por ultrassonografia dúplex venosa de membros inferiores e angiotomografia pulmonar; TEA sintomático e morte cardiovascular no 35º dia. Os resultados do estudo não mostraram diferença significativa entre o grupo que recebeu a intervenção e o grupo que recebeu o tratamento-padrão quanto ao TEV (DR: −0,02; IC95%: −0,04 a 0,01). Também não houve diferença significativa entre o grupo que recebeu a intervenção e o grupo que recebeu o tratamento-padrão quanto ao tromboembolismo pulmonar sintomático (DR: −0,01; IC95%: −0,03 a 0,01). Finalmente, não houve diferença significativa entre o grupo que recebeu a intervenção e o grupo que recebeu o tratamento-padrão quanto à embolia pulmonar fatal (DR: −0,02; IC95%: −0,04 a 0,01); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S1).(22)
 
Pacientes com COVID-19 hospitalizados
 
Seis ECR(14-19) foram incluídos na análise de pacientes com COVID-19 hospitalizados, com 2.491 pacientes no grupo que recebeu a dose terapêutica (anticoagulação plena) e 2.422 pacientes no grupo que recebeu o tratamento-padrão. Como se pode observar na Figura 2A, não houve redução significativa da taxa de mortalidade em 30 dias em pacientes com doença moderada a grave (DR: −0,01; IC95%: −0,04 a 0,02; p = 0,50; I2 = 59%); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S2). Quando os pacientes com COVID-19 moderada(14,15,17,18) ou grave(16) foram analisados separadamente, não se observou diferença significativa entre anticoagulação plena e tratamento-padrão naqueles com COVID-19 moderada (DR: −0,02; IC95%: −0,06 a 0,03; p = 0,41; I2 = 75%; Figura 2B); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S2). Apenas um estudo avaliou pacientes com COVID-19 grave; o estudo não mostrou diferença significativa entre os dois grupos quanto à taxa de mortalidade (DR: 0,01; IC95%: −0,04 a 0,07; p = 0,66), com evidências de qualidade muito baixa (Tabela S2).


 
Eventos trombóticos (eventos de TEV, TEA ou ambos) foram avaliados em 5 estudos,(14,16-19) com um total de 2.449 pacientes no grupo que recebeu a dose terapêutica e 2.338 pacientes no grupo que recebeu o tratamento-padrão. Como se pode observar na Figura 2C, houve redução significativa (de 3%) dos eventos trombóticos em 30 dias no grupo que recebeu a dose terapêutica em comparação com o grupo que recebeu o tratamento-padrão (DR: −0,03; IC95%: −0,06 a −0,00; p = 0,04; I2 = 78%), com NNT = 33. A qualidade das evidências foi moderada (Tabela S2). Esse resultado foi persistentemente significativo quando a gravidade da COVID-19 foi avaliada. Em pacientes com COVID-19 moderada,(17,18) 2 estudos demonstraram redução de 1% da DR (IC95%: −0,02 a −0,00; Figura 2D), com NNT = 100 e evidências de qualidade baixa (Tabela S2). Em pacientes com COVID-19 grave,(16) 1 estudo demonstrou redução significativa (de 4%) do TEV após 30 dias (IC95%: −0,04 a −0,01; p = 0,02); o NNT foi = 25, e a qualidade das evidências foi baixa (Tabela S2).
 
Sangramento maior em 30 dias foi descrito em 5 estudos, com amostra total de 4.787 pacientes. (14,16 19) Como se pode observar na Figura 2E, não houve diferença significativa entre coagulação plena e tratamento-padrão quanto ao sangramento maior (DR: 0,02; IC95%: −0,00 a 0,04; p = 0,13; I2 = 71%); a qualidade das evidências foi muito baixa. Quando foram analisados os pacientes com COVID-19 moderada,(15,18-20) não se observou diferença significativa entre os dois grupos (DR: 0,01; IC95%: −0,02 a 0,04; p = 0,40; I2 = 72%); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S2). Em pacientes com COVID-19 grave, 2 ECR mostraram que não houve diferenças significativas entre os dois grupos quanto ao sangramento maior (DR: 0,04; IC95%: −0,03 a 0,11; p = 0,11; I2 = 61%; Figura 2G)(16,19); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S2).
 
Dose profilática intermediária vs. dose profilática (tratamento-padrão)
 
Um total de 771 pacientes oriundos de 2 ECR(21,22) foram analisados quanto ao uso de dose profilática intermediária vs. tratamento-padrão. Ambos os estudos avaliaram intervenções em pacientes com COVID-19 grave. Como mostra a Figura 3A, não se observou diferença significativa entre os dois grupos quanto à taxa de mortalidade em 30 dias (DR: −0,01; IC95%: −0,07 a 0,06; p = 0,81; I2 = 0%); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S3).
 
Como se pode observar na Figura 3B, não houve diferença significativa entre os dois grupos no que tange a eventos de TEV (DR: −0,00; IC95%: −0,03 a 0,03; p = 0,99; I2 = 0%); a qualidade das evidências foi baixa (Tabela S3). Como se pode observar na Figura 3C, o risco de eventos de TEA foi semelhante nos dois grupos (DR: 0,01; IC95%: −0,04 a 0,05; p = 0,77; I2 = 62%); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S3). Como se pode observar na Figura 3D, não houve diferença significativa entre os dois grupos no que tange ao sangramento maior (DR: 0,01; IC95%: −0,01 a 0,03; p = 0,44; I2 = 0%); a qualidade das evidências foi muito baixa (Tabela S3).


 
DISCUSSÃO
 
A presente revisão sistemática e meta-análise mostrou que a anticoagulação terapêutica não teve nenhum efeito de redução da mortalidade ou de aumento de eventos hemorrágicos maiores em pacientes com COVID-19 moderada a grave. Observamos uma ligeira redução de eventos de TEV em pacientes hospitalizados com COVID-19 moderada a grave em 30 dias quando a anticoagulação terapêutica foi usada. O uso de uma dose profilática intermediária ou de intervenção profilática pós-alta não apresentou relação nem com redução de mortalidade, TEV e TEA nem com aumento de sangramento.
 
No tocante ao desfecho de mortalidade em pacientes com COVID-19 hospitalizados, nossos resultados são semelhantes aos de outras revisões sistemáticas.(5,8) A anticoagulação terapêutica nesses pacientes pode não estar diretamente relacionada com a mortalidade, mas pode estar relacionada com a redução do TEV. O TEV pode ser fatal em pacientes hospitalizados e, se não for reconhecido, pode aumentar o risco de mortalidade. Observamos um efeito consistente da anticoagulação terapêutica na redução do TEV, mesmo quando os pacientes moderados (na enfermaria) ou graves (na UTI) foram analisados como um subgrupo. Além disso, a anticoagulação terapêutica nessa população não aumentou o sangramento maior durante o tratamento como desfecho primário de segurança. Esse achado é consistente com os de revisões sistemáticas anteriores que mostraram redução de eventos de TEV em pacientes hospitalizados.(23-25) No entanto, os autores das revisões supracitadas agruparam todos os ECR com diferentes doses de anticoagulação como sendo o grupo de intervenção. Em nossos resultados, pudemos enfatizar a redução do TEV quando a anticoagulação terapêutica foi usada como intervenção. Por outro lado, a redução do TEV foi pequena, sendo necessário um NNT elevado para uma redução = 1 do TEV. Além disso, a qualidade das evidências foi baixa, aumentando o grau de incerteza. São necessários mais ECR para aumentar o grau de certeza dos resultados.
 
O efeito da anticoagulação intermediária não se relacionou com a redução do TEV em comparação com o tratamento-padrão. Esse achado está de acordo com a literatura.(24-26) A maioria das diretrizes clínicas de COVID-19 recomenda o uso de anticoagulação profilática durante a hospitalização. No entanto, apenas 2 ECR analisaram a eficácia dessa intervenção. Essa importante recomendação clínica deve ser avaliada na realidade de prática clínica para os pacientes que apresentem características semelhantes aos daqueles que foram incluídos nos ECR. Precisamos considerar se a intervenção terapêutica é recomendada para todos os pacientes com COVID-19, mesmo quando não apresentam níveis elevados de marcadores inflamatórios sistêmicos. Alguns protocolos de ECR consideraram a necessidade de um nível elevado de inflamação sistêmica nos critérios de inclusão. É importante mencionar o NNT necessário para uma redução = 1 da ocorrência de eventos de TEV. Identificamos um mínimo de 100 pacientes que receberam anticoagulação terapêutica para reduzir o TEV. Ensaios em andamento podem determinar se a anticoagulação com dose terapêutica aumenta a eficácia em desfechos específicos. Portanto, precisamos avaliar o melhor equilíbrio para trocar anticoagulação profilática por anticoagulação terapêutica e tentar estabelecer o diagnóstico de TEV.
 
Em pacientes com COVID-19 não hospitalizados, não observamos redução da mortalidade, TEV ou TEA com o uso de dose profilática após a alta hospitalar. No entanto, é preciso considerar as condições clínicas dos pacientes no momento da alta. A maioria dos pacientes críticos precisa de reabilitação para se recuperar de longos períodos de imobilidade, e precisamos considerar o risco de eventos de TEV após a alta hospitalar. Infelizmente, apenas um dos ECR incluídos no presente estudo abordou essa questão, e não temos uma resposta robusta a essa pergunta. Além disso, pacientes ambulatoriais sintomáticos com COVID-19 precisam ser avaliados em ECR para que se possam avaliar os benefícios do uso de anticoagulantes. Para responder a essa pergunta, ECR estão em andamento em todo o mundo nesse momento.
 
A presente revisão sistemática e meta-análise tem pontos fortes e limitações. Como apenas ECR de fase 3 foram incluídos no presente estudo, pudemos demonstrar a real influência que a intervenção utilizada teve nos desfechos selecionados. O grau de certeza dos resultados aqui apresentados depende de novos ECR e futuras análises de populações maiores. Outras limitações incluem as características da população do estudo, os desfechos avaliados em diferentes momentos e as diferenças entre os estudos quanto às intervenções, que sugerem que os estudos são heterogêneos. Além disso, um dos estudos incluídos na presente revisão sistemática e meta-análise incluiu pacientes ambulatoriais e teve uma amostra pequena, o que limita o grau de certeza de nossos resultados. Portanto, não podemos afirmar se os resultados aqui apresentados sofrerão alterações no futuro.
 
Em suma, a anticoagulação terapêutica aparentemente não reduz a mortalidade em pacientes com COVID-19. Em pacientes hospitalizados, a anticoagulação terapêutica parece resultar em ligeira redução do TEV sem aumento do risco de sangramento maior.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
SET, HAB, IF e WMB: concepção e desenho do estudo. WMB, SET, DRB e IF: coleta de dados, análise estatística e interpretação dos dados. WMB, DRB e SET: redação do manuscrito. SET, HAB, AN, AS e WMB: revisão crítica do manuscrito e aprovação da versão final.
 
CONFLITO DE INTERESSES
 
Nenhum conflito declarado.
 
REFERÊNCIAS
 
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