A fenotipagem da asma grave é um componente-chave do manejo da asma, não apenas por sua complexidade biopatológica e heterogeneidade clínica, mas também pelos altos custos do tratamento com imunobiológicos. Embora a asma grave seja incomum, com prevalência estimada entre < 1%(1) e 3,7%(2) entre todos os pacientes com asma, ela é responsável por grande parte da carga da doença. No Brasil, tem se demonstrado que a asma grave é responsável por custos muito elevados para as famílias e para o Sistema Único de Saúde.(3)
As recém-publicadas Recomendações para o Manejo da Asma Grave da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia 2021(4) adotaram a definição de asma grave das diretrizes internacionais da European Respiratory Society/American Thoracic Society de 2014.(5) Asma grave é definida como aquela confirmada por um método objetivo, com boa adesão do paciente ao tratamento e que, apesar da eliminação ou minimização dos fatores associados ao não controle da doença, requer altas doses de corticoide inalatório (propionato de fluticasona ≥ 1.000 µg ou equivalente) associado a um segundo medicamento controlador (um β2-agonista de longa duração e/ou um antagonista muscarínico de longa duração e/ou um antileucotrieno) ou uso de corticoide oral ≥ 50% dos dias no ano anterior para tentar manter o controle da doença. A Global Initiative for Asthma (GINA)(6) define asma grave de forma semelhante, exceto quanto à dose de corticoide inalatório (propionato de fluticasona > 500 µg ou equivalente). A adoção de uma das definições é relevante porque a definição da GINA inclui pacientes considerados por outros como asmáticos moderados.
Nesta edição do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Athanazio et al.(7) relatam os resultados de um grande (n = 385) estudo transversal multicêntrico (denominado estudo BRAEOS) sobre fenotipagem da asma grave. Os autores utilizaram dados prospectivos (amostra de sangue e questionários de controle da asma e de qualidade de vida) e retrospectivos. O desfecho primário foi a prevalência de fenótipos eosinofílico e alérgico. Os critérios de inclusão foram ter asma grave conforme definido pela GINA há pelo menos um ano. Os pacientes foram excluídos se fossem fumantes/ex-fumantes (≥ 10 anos-maço), tivessem apresentado exacerbação moderada/grave da asma ou qualquer alteração no tratamento nas últimas quatro semanas. Outros critérios de exclusão foram tratamento com imunobiológicos nos últimos três meses (exceto omalizumabe) e presença de outras doenças pulmonares. O fenótipo eosinofílico foi definido pela presença de eosinófilos sanguíneos ≥ 300 células/mm3. O fenótipo alérgico foi definido como uma combinação de IgE sérica > 100 UI/mL e história de alergia (documentada clinicamente por história de alergia respiratória ou atopia (IgE específica positiva ou teste cutâneo por puntura para aeroalérgenos). A asma de início tardio foi definida como o início dos sintomas de asma em pacientes ≥ 12 anos de idade. A prevalência pontual de asma eosinofílica (desfecho primário) foi de 40,0%. Além disso, 73,2% dos indivíduos apresentavam atopia (história de alergia confirmada por IgE específica ou teste cutâneo).
Parabenizamos os autores do estudo BRAEOS(7) por produzir dados relevantes e fornecer insights sobre asma grave no Brasil. Porém, esse grande estudo nos forneceu respostas definitivas sobre a prevalência de asma eosinofílica grave? Uma questão que surge primeiramente é a definição de asma grave utilizada no estudo. Pode-se argumentar que um ponto de corte > 500 μg/dia de propionato de fluticasona pode ter permitido a inclusão de pacientes com asma menos grave na população do estudo e, portanto, ter influência nos dados. No entanto, os resultados do estudo de Athanazio et al.(7) mostraram que a maioria dos indivíduos estava em uso de doses mais altas de corticoide inalatório, o que é tranquilizador.
E a respeito da definição do fenótipo eosinofílico? É indiscutível que a contagem de células no escarro induzido é o método padrão ouro para o fenótipo da asma eosinofílica. No entanto, por ser percebido como um método de difícil execução, o escarro induzido é disponibilizado apenas em alguns centros de pesquisa em asma. Atualmente, os fenótipos de asma grave baseiam-se na facilidade de biomarcadores acessíveis visando a introdução do tratamento imunobiológico. A esse respeito, a contagem de eosinófilos no sangue periférico é uma vantagem. O ponto de corte para o fenótipo eosinofílico, entretanto, varia de acordo com o imunobiológico em estudo. No estudo BRAEOS,(7) os autores escolheram o ponto de corte > 300 eosinófilos/mm3 para definir asma eosinofílica, o que ocorreu em 40% dos indivíduos. Contudo, a proporção de asmáticos com fenótipo eosinofílico aumento para 70% quando o ponto de corte > 150 eosinófilos/mm3 foi testado. Esses resultados ilustram a falta de concordância sobre o que é o fenótipo eosinofílico quando medido pela contagem de células do sangue periférico.
Dito isso, o estudo BRAEOS(7) poderia subestimar a prevalência de asma eosinofílica em nosso país por outros motivos? Possivelmente. Sabe-se que a contagem de eosinófilos no sangue periférico sofre influência de vários fatores, incluindo a dose de corticoides inalatórios e orais, variação diurna, infecções respiratórias ou sistêmicas recentes, etc. Portanto, um único hemograma não exclui eosinofilia sanguínea. Assim, as recomendações da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia(4) e da GINA(6) sugerem que a exclusão do fenótipo eosinofílico requer até três contagens de eosinófilos no sangue em diferentes ocasiões. Se necessário, o tratamento com corticoides deve ser cuidadosamente reduzido para permitir que os eosinófilos no sangue ressurjam. Embora o estudo BRAEOS(7) tenha excluído pacientes com história recente de infecção respiratória, o estudo utilizou uma única contagem de eosinófilos sanguíneos. Isso também pode explicar a baixa prevalência do fenótipo eosinofílico relatada.
Outro achado importante do estudo BRAEOS(7) alinhado com o conhecimento atual foi que a maioria dos participantes apresentava atopia. Em contraste, apenas 31,9% daqueles com histórico de alergia apresentavam eosinofilia sanguínea. Esse paradoxo é bastante inquietante e não é apoiado pelo conhecimento atual da fisiopatologia da asma alérgica, uma doença T2 alta, mediada por IgE, IL-4, IL-5, eosinófilos, basófilos e mastócitos.(8) Assim, a plausibilidade biológica sugere que a asma alérgica é uma doença eosinofílica, o que nos faz questionar novamente a baixa prevalência do fenótipo eosinofílico relatada no estudo BRAEOS.(7)
Por fim, no estudo BRAEOS,(7) quase metade dos indivíduos apresentou asma de início tardio, definida como o início dos sintomas de asma em indivíduos ≥ 12 anos de idade. Embora o ponto de corte para definir asma de início tardio esteja longe de ser estabelecido, variando de 12 a 65 anos em diferentes estudos,(9) argumentamos que indivíduos com 12 anos são crianças. Talvez a melhor maneira de lidar com essa questão seja adotar uma classificação mais racional de asma de início tardio com os pontos de corte propostos em um recente estudo de coorte de múltiplos bancos de dados.(10) Naquele estudo, Baan et al.(10) basearam a caracterização da idade de início da asma como o primeiro diagnóstico de asma registrado pelo médico assistente, classificando os participantes como tendo asma de início na infância (diagnóstico de asma antes dos 18 anos), asma de início na idade adulta (diagnóstico de asma entre 18 e 40 anos de idade) ou asma de início tardio (diagnóstico de asma ≥ 40 anos de idade).
Em conclusão, independentemente dos pontos aqui levantados, o estudo BRAEOS(7) é o primeiro a avaliar o fenótipo de um grande grupo de indivíduos com asma grave no Brasil. O estudo mostra os desafios da fenotipagem da asma grave frente às atuais definições desse subgrupo complexo, incomum e heterogêneo da asma. Estudos semelhantes em grande escala, com informações detalhadas sobre fenótipos com repetidas medidas de eosinófilos no sangue, são necessários para construir evidências adicionais do panorama da asma grave no Brasil. Como os autores alertam, entender o perfil inflamatório de nossos pacientes com asma grave é essencial para o tratamento-alvo específico e o desenvolvimento de estratégias de políticas de saúde pública nacionais.
REFERÊNCIAS
1. Hekking PW, Wener RR, Amelink M, Zwinderman AH, Bouvy ML, Bel EH. The prevalence of severe refractory asthma. J Allergy Clin Immunol. 2015;135(4):896-902. https://doi.org/10.1016/j.jaci.2014.08.042
2. Kerkhof M, Tran TN, Soriano JB, Golam S, Gibson D, Hillyer EV, et al. Healthcare resource use and costs of severe, uncontrolled eosinophilic asthma in the UK general population. Thorax. 2018;73(2):116-124. https://doi.org/10.1136/thoraxjnl-2017-210531
3. Stirbulov R, Lopes da Silva N, Maia SC, Carvalho-Netto E, Angelini L. Cost of severe asthma in Brazil-systematic review. J Asthma. 2016;53(10):1063-1070. https://doi.org/10.3109/02770903.2016.1171338
4. Carvalho-Pinto RM, Cançado JED, Pizzichini MMM, Fiterman J, Rubin AS, Cerci Neto A, et al. 2021 Brazilian Thoracic Association recommendations for the management of severe asthma. J Bras Pneumol. 2021;47(6):e20210273. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210273
5. Chung KF, Wenzel SE, Brozek JL, Bush A, Castro M, Sterk PJ, et al. International ERS/ATS guidelines on definition, evaluation and treatment of severe asthma [published correction appears in Eur Respir J. 2014 Apr;43(4):1216. Dosage error in article text] [published correction appears in Eur Respir J. 2018 Jul 27;52(1):]. Eur Respir J. 2014;43(2):343-373. https://doi.org/10.1183/09031936.00202013
6. Global Initiative for Asthma [homepage on the internet]. Bethesda: Global Initiative for Asthma; c2021 [cited 2021 Jun 1]. Global Strategy for Asthma Management and Prevention (2021 update). [Adobe Acrobat document 217p.]. Available from: https://ginasthma.org/wp-content/uploads/2021/05/GINA-Main-Report-2021-V2-WMS.pdf
7. Athanazio R, Stelmach R, Antila M, Souza-Machado A, Arruda LK, Cerci Neto A, et al. Prevalence of the eosinophilic phenotype among severe asthma patients in Brazil: the BRAEOS study. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210367.
8. Peters MC, Wenzel SE. Intersection of biology and therapeutics: type 2 targeted therapeutics for adult asthma. Lancet. 2020;395(10221):371-383. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)33005-3
9. Quirce S, Heffler E, Nenasheva N, Demoly P, Menzies-Gow A, Moreira-Jorge A, et al. Revisiting Late-Onset Asthma: Clinical Characteristics and Association with Allergy. J Asthma Allergy. 2020;13:743-752. https://doi.org/10.2147/JAA.S282205
10. Baan EJ, de Roos EW, Engelkes M, de Ridder M, Pedersen L, Berencsi K, et al. Charac-terization of Asthma by Age of Onset: A Multi-Database Cohort Study. J Allergy Clin Immunol Pract. 2022;S2213-2198(22)00330-0. https://doi.org/10.1016/j.jaip.2022.03.019