Eventos intercorrentes em pesquisa clínica: a norma, não a exceção
L. Paloma Rojas-Saunero1,2, Cecilia María Patino1,3, Juliana Carvalho Ferreira1,4
DOI: 10.36416/1806-3756/e20220310
CENÁRIO PRÁTICO
Uma equipe de pneumologia e terapia intensiva delineou um ensaio clínico controlado randomizado (ECR) para avaliar a eficácia e segurança de um novo medicamento vs. o padrão de tratamento na redução do número de hospitalizações devido a exacerbações por DPOC em pacientes adultos por um ano. Ambas as intervenções (novo medicamento e tratamento padrão) exigiam o uso diário de dispositivo inalatório durante todo o período de acompanhamento; portanto, a adesão diária foi monitorada. É importante ressaltar que os pesquisadores anteciparam um problema não evitável relacionado a estudos longitudinais: os participantes poderiam morrer devido a comorbidades comuns, o que constitui um evento intercorrente.
EVENTOS INTERCORRENTES
Em ECR, eventos intercorrentes são definidos como eventos que ocorrem após o início do tratamento e afetam a capacidade de medir a intervenção de interesse ou impedem a ocorrência de um desfecho ao longo do seguimento (Figura 1). Os eventos adversos que levam ao cruzamento do braço de estudo ou à descontinuação do tratamento atribuído são considerados eventos intercorrentes porque impedem a continuação da intervenção atribuída. Como esses eventos afetam a interpretação dos resultados do estudo, devemos considerá-los ao definir a pergunta do estudo, seu delineamento e análise.
EVENTOS CONCORRENTES — QUANDO O DESFECHO NÃO PODE OCORRER
Eventos concorrentes são um tipo particular de eventos intercorrentes; eles impedem que o desfecho do estudo ocorra.(1) Em nosso exemplo, os participantes que morreram por outros motivos e antes de uma hospitalização devido a uma exacerbação da DPOC não podem mais ter o desfecho do estudo. Consequentemente, a morte determina que o risco de hospitalização relacionada à exacerbação da DPOC para esses participantes seja zero. Portanto, ao calcular a medida de efeito, como a diferença de risco ou a razão de risco entre os dois braços de estudo, devemos ter cuidado na interpretação dos resultados, pois parte do efeito da nova intervenção quando comparada com a existente pode ser explicada por como e/ou se a intervenção afetou o evento concorrente.
EVENTOS CENSURADOS — QUANDO O DESFECHO NÃO PODE SER MEDIDO
Eventos concorrentes também podem ser definidos como um evento censurado em algumas configurações. Os eventos censurados são aqueles que podem impedir os investigadores de medir o desfecho, ao invés de impedir que ele aconteça. Por exemplo, quando os participantes se mudam para outra área geográfica e o acompanhamento é interrompido, os investigadores não podem determinar se esses participantes foram hospitalizados, morreram por outros motivos ou permaneceram livres do desfecho. A censura baseia-se na suposição de que os participantes que foram perdidos no seguimento (censurados) compartilham características demográficas e clínicas medidas e não medidas semelhantes a aqueles que permaneceram no estudo. Essa suposição é chamada de “suposição de censura independente” e requer ampla experiência no tópico de interesse para ser evocada.(1)
Em nosso exemplo, definir a morte por outras causas como um evento censurado requeriria que conceituemos esse evento como evitável pelo desenho do estudo (assim como a perda de seguimento) e assumíssemos que aqueles que morreram são demograficamente e clinicamente comparáveis àqueles que permaneceram no estudo. Da mesma forma, receber um transplante de pulmão pode ser considerado um evento concorrente, pois os pacientes transplantados de pulmão não têm mais DPOC e, portanto, não podem ser hospitalizados por exacerbações da DPOC. No entanto, tratar o transplante de pulmão como um evento censurado pode ser razoável em alguns cenários.(2)
A consideração cuidadosa do impacto de eventos intercorrentes nos resultados do estudo é necessária ao serem delineadas abordagens analíticas para fornecer resultados precisos e confiáveis que podem informar o atendimento a pacientes e políticas de saúde.
PONTOS-CHAVE
• Identifique todos os potenciais eventos intercorrentes que podem ocorrer durante o acompanhamento ao delinear ECR ou estudos observacionais longitudinais
• Definir claramente os eventos intercorrentes ajuda a
• refinar as perguntas do estudo
• identificar dados que precisam ser coletados longitudinalmente para contabilizar eventos intercor-rentes
• facilitar a interpretação e as implicações dos resultados
• Informe a frequência (em números absolutos e relativos) de eventos intercorrentes por variável
• Consulte um especialista ao realizar estudos longitudinais com eventos concorrentes
REFERÊNCIAS
1. Geskus RB. Data Analysis with Competing Risks and Intermediate States. 1st ed. Boca Raton (FL): Chapman & Hall/CRC Biostatistics Series; 2016.
2. van Geloven N, le Cessie S, Dekker FW, Putter H. Transplant as a competing risk in the analysis of dialysis patients. Nephrol Dial Transplant. 2017;32(suppl_2):ii53-ii59. https://doi.org/10.1093/ndt/gfx012