Os sistemas eletrônicos de liberação de nicotina (SELN) ou cigarros eletrônicos foram desenvolvidos por Hon Lik, um farmacêutico chinês, e patenteados em 2003. (1) Em 2014, um artigo de revisão no Jornal Brasileiro de Pneumologia(1) afirmou que os SELN eram “controversos” e que poucos estudos avaliaram “os efeitos dos cigarros eletrônicos na redução e cessação do tabagismo durante um período de 6 a 24 meses”.
Em 19 de agosto de 2015, o governo do Reino Unido emitiu um comunicado à imprensa com a manchete “Cigarros eletrônicos são cerca de 95% menos prejudiciais do que o tabaco, estima revisão histórica”, divulgando um novo relatório(2) encomendado pela Public Health England (PHE) e liderado pela Professora Ann McNeill e pelo Professor Peter Hajek, que glorificaram o uso de cigarros eletrônicos como uma estratégia de redução de danos e minimizaram seus riscos associados. A alegação de segurança atraiu grande interesse da mídia em todo o mundo.
A PHE relatou que os SELN eram “95% menos prejudiciais que o tabaco” com base em uma única publicação que foi tendenciosa de várias maneiras.(3) Em julho de 2013, a PHE deu um workshop de dois dias em Londres que incluiu um painel internacional de especialistas(3) para analisar o contexto dos tipos de danos causados por produtos que contêm nicotina, a variedade dos produtos (obviamente incluindo os SELN) e os critérios para tais danos. Durante o workshop, os produtos foram pontuados de acordo com os tipos de dano, e pesos foram aplicados aos resultados. Não houve um critério formal para o recrutamento dos especialistas (alguns nem mesmo eram da área da saúde), bem como houve falta de provas concretas do tipo de dano causado pela maioria dos produtos na maioria dos critérios, assim como houve muitos conflitos de interesse de vários dos participantes, como destacado em publicações do British Medical Journal em setembro(4) e novembro(5) de 2015, mas não totalmente divulgados no estudo.(3) O estudo foi basicamente uma opinião tendenciosa de um grupo “na lista de pagamento dos fabricantes”, conforme o título de um artigo publicado pelo jornal Daily Mail.(6)
Em 2018, o PHE reiterou sua afirmação de que o dispositivo vaping “é pelo menos 95% mais seguro do que fumar” e reforçou seu uso para a “cessação do tabagismo”, recomendando-o até mesmo para mulheres grávidas. (7) No mesmo ano, The Royal College of Psychiatrists(8) publicou uma declaração de posicionamento endossando o uso de vareniclina e de cigarros eletrônicos para reduzir a prevalência do tabagismo entre pessoas com problemas de saúde mental.
A indústria de SELN (conhecida como “Big Vape”) é de propriedade de grandes empresas de tabaco (conhecidas como “Big Tobacco”). Somente em 2018 nos EUA, os 25 principais fabricantes de cigarros eletrônicos faturaram mais de US$ 2,5 bilhões em vendas: 96% dessas vendas foram de marcas de propriedade total ou parcial das Big Tobacco.(9) Em 2018, a receita do mercado de cigarros eletrônicos no Reino Unido foi de US$ 2.498,07 milhões, segundo o site statista.com.(10)
A lógica de redução de danos do tabaco inclui fornecer a seus usuários que “não querem ou não conseguem parar” produtos contendo nicotina que sejam menos prejudiciais para uso contínuo.(11) O ceticismo em relação à redução de danos é baseado no histórico de cigarros de baixo teor de alcatrão/nicotina que são promovidos e comercializados como tendo menores riscos à saúde. (11) Somente mais tarde os cientistas aprenderam que os chamados “cigarros mais saudáveis” eram uma maneira enganosa de mitigar as preocupações com a saúde dos consumidores e de mantê-los em estágios de pré-contemplação: uma estratégia para minar a cessação. Os SELN foram agressivamente propagandeados usando táticas semelhantes.
Um ensaio controlado randomizado comparou a eficácia de SELN com a terapia de reposição de nicotina (TRN) para a “cessação do tabagismo”.(12) Esse foi um dos dez artigos mais lidos entre janeiro e julho de 2019 (ano de publicação). O estudo contém vieses múltiplos e importantes: os pesquisadores não garantiram que cada grupo usasse apenas um dos medicamentos (3% dos usuários de SELN também usaram TRN e 20% daqueles que usaram TRN também usaram SELN), não houve um método objetivo para avaliar a adesão, os gerenciadores de apoio comportamental sabiam em quais grupos os pacientes foram alocados, e a análise por intenção de tratar não foi realizada. A taxa de abstinência em um ano foi de 18,0% e 9,9% nos grupos cigarro eletrônico e TRN, respectivamente. A taxa de abstinência no grupo TRN foi metade das taxas que são normalmente encontradas em ensaios utilizando TRN: Rosen et al.(13) selecionaram três revisões sistemáticas publicadas pela Cochrane Collaboration que incluíram 61 ensaios clínicos randomizados utilizando medicamentos de primeira linha para a cessação do tabagismo e investigaram essa cessação em 6 e 12 meses de seguimento. A meta-análise mostrou que 19,8% dos participantes que usaram TRN permaneceram abstinentes em 12 meses.(8)
Existem cerca de 2.000 produtos químicos que são inalados com o uso de SELN, a maioria dos quais é ignorada.(14) O aerossol de SELN não é um “vapor de água” inofensivo: ele contém metais pesados, partículas ultrafinas e agentes cancerígenos. Cigarros eletrônicos são cigarros! Portanto, eles compartilham os mesmos efeitos adversos à saúde dos cigarros combustíveis e também têm seus próprios riscos específicos, como a denominada lesão pulmonar associada ao uso de vaping/e-cigarette.(15) As consequências do uso prolongado desses dispositivos continuam desconhecidos.(15)
Os profissionais de saúde devem seguir o princípio hipocrático primum non nocere (não causar danos). Cigarros eletrônicos não são um tratamento de cessação do tabagismo. O uso de SELN causa doenças, replica características comportamentais e sociais do tabagismo, perpetua a dependência da nicotina e renormaliza o tabagismo.
CONFLITOS DE INTERESSES
Nenhum declarado.
REFERÊNCIAS
1. Knorst MM, Benedetto IG, Hoffmeister MC, Gazzana MB. The electronic cigarette: the new cigarette of the 21st century?. J Bras Pneumol. 2014;40(5):564-572. https://doi.org/10.1590/S1806-37132014000500013
2. McNeill A, Brose LS, Calder R, Hitchman SC, Hajek P, McRobbie H. E-Cigarettes : An Evidence Update. A report commissioned by Public Health England [monograph on the Internet]. London: Public Health England; 2015 [cited 2022 Sep 19; Adobe Acrobat document, 113p.]. Available from: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/733022/Ecigarettes_an_evidence_update_A_report_commissioned_by_Public_Health_England_FINAL.pdf
3. Nutt DJ, Phillips LD, Balfour D, Curran HV, Dockrell M, Foulds J, et al. Estimating the harms of nicotine-containing products using the MCDA approach. Eur Addict Res. 2014;20(5):218-225. https://doi.org/10.1159/000360220
4. Gornall J. Public Health England’s troubled trail. BMJ. 2015;351:h5826. https://doi.org/10.1136/bmj.h5826
5. Stahl-Timmins W. Vape trails infographic. BMJ. 2015;351:h5826. https://www.bmj.com/content/351/bmj.h5826/infographic
6. Spencer B. E-cigarette industry funded experts who ruled vaping is safe: Official advice is based on research scientists in the pay of manufacturers. The Daily Mail. 2015 Sep 1. Available from MailOnline: https://www.dailymail.co.uk/health/article-3213676/E-cigarette-industry-funded-experts-ruled-vaping-safe-Official-advice-based-research-scientists-pay-vaping-companies.html
7. McNeill A, Brose LS, Calder R, Bauld L, Robson D. Evidence review of e-cigarettes and heated tobacco products 2018. A Report Commissioned by Public Health England [monograph on the Internet]. London: Public Health England; 2018 [cited 2022 Sep 19; Adobe Acrobat document, 243p.]. Available from; https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/684963/Evidence_review_of_e-cigarettes_and_heated_tobacco_products_2018.pdf
8. Royal College of Psychiatrists [homepage on the Internet]. London: The College. The prescribing of varenicline and vaping (electronic cigarettes) to patients with severe mental illness. [updated 2018 Dec; cited 2022 Sep 19]. [Adobe Acrobat document, 14p.]. Available from: https://www.rcpsych.ac.uk/docs/default-source/improving-care/better-mh-policy/position-statements/ps05_18
9. Truth Initiative [homepage on the Internet]. Washington, DC: Truth Initiative; c2022 [updated 2019 Nov; cited 2022 Sep 19]. Spinning a New Tobacco Industry: How Big Tobacco Is Trying to Sell a Do-Gooder Image and What Americans Think about It. [Adobe Acrobat document, 23p.]. Available from: https://truthinitiative.org/sites/default/files/media/files/2019/11/Tobacco%20Industry%20Interference%20Report_final111919.pdf
10. Statista Research Department. Revenue in the e-cigarette market in the United Kingdom from 2012 to 2025. Consumer Goods & FMCG: Tobacco. [updated 2021; cited 2022 Sep 19]. Available from:. https://www.statista.com/forecasts/1178470/united-kingdom-revenue-in-the-e-cigarette-market
11. Hatsukami DK, Carroll DM. Tobacco harm reduction: Past history, current controversies and a proposed approach for the future. Prev Med. 2020;140:106099. https://doi.org/10.1016/j.ypmed.2020.106099
12. Hajek P, Phillips-Waller A, Przulj D, Pesola F, Myers Smith K, Bisal N, et al. A Randomized Trial of E-Cigarettes versus Nicotine-Replacement Therapy. N Engl J Med. 2019;380(7):629-637. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1808779
13. Rosen LJ, Galili T, Kott J, Goodman M, Freedman LS. Diminishing benefit of smoking cessation medications during the first year: a meta-analysis of randomized controlled trials. Addiction. 2018;113(5):805-816. https://doi.org/10.1111/add.14134
14. Tehrani MW, Newmeyer MN, Rule AM, Prasse C. Characterizing the Chemical Landscape in Commercial E-Cigarette Liquids and Aerosols by Liquid Chromatography-High-Resolution Mass Spectrometry. Chem Res Toxicol. 2021;34(10):2216-2226. https://doi.org/10.1021/acs.chemrestox.1c00253
15. Jonas A. Impact of vaping on respiratory health. BMJ. 2022;378:e065997. https://doi.org/10.1136/bmj-2021-065997