A DPOC é definida como “uma doença comum, prevenível e tratável, caracterizada por sintomas respiratórios persistentes e limitação ao fluxo aéreo”.(1) A DPOC é a principal causa de morbidade e mortalidade em todo o mundo, sendo a terceira principal causa de morte em 2019. Portanto, a DPOC sobrecarrega a sociedade e a economia como um todo.(1) A mortalidade relacionada à DPOC é frequentemente associada a comorbidades cardiovasculares.(2,3) Evidências sugerem que a mortalidade por doença cardiovascular (DCV) é mais prevalente do que aquelas relacionadas à insuficiência respiratória em pacientes com DPOC.(4,5)
A associação entre DPOC e DCV foi sugerida devido a vários fatores, incluindo fatores de risco compartilhados (tabagismo, envelhecimento), sobreposição de sintomas (dispneia, limitação ao exercício) e processos fisiopatológicos (inflamação sistêmica, aumento do estresse oxidativo).(2,5-8) O aumento da resposta inflamatória à fumaça do cigarro em pacientes com DPOC contribui para a formação de placa aterosclerótica, que leva à doença coronariana.(7,8) Nas exacerbações agudas da DPOC, a infecção do trato respiratório induz uma estimulação inflamatória aguda, potencialmente levando a um alto risco de evento cardiovascular agudo.(7,9) Na DPOC estável, níveis circulantes mais altos de biomarcadores inflamatórios sistêmicos foram relatados, sendo associados a um maior risco de lesão cardíaca.(10)
Além da inflamação crônica supracitada, várias características da DPOC afetam a função e a estrutura cardíacas, como limitação do fluxo aéreo, hiperinsuflação e hipóxia pulmonar.(5,7,11) A hiperinsuflação pulmonar decorrente da limitação crônica ao fluxo aéreo, associada ao aumento da resistência vascular pulmonar por vasoconstrição hipóxica, poderia aumentar diretamente a pressão da artéria pulmonar (hipertensão pulmonar), levando à disfunção diastólica do ventrículo direito (VD). (3,11) O aumento crônico da pressão pulmonar na DPOC de longa duração leva a dilatação e hipertrofia do VD, que geralmente preserva o volume sistólico.(5,12) Durante uma exacerbação aguda da DPOC, um aumento súbito na carga de pressão do VD pode levar a cor pulmonale agudo, que se apresenta com dilatação aguda do VD e insuficiência do VD.(12,13) A hiperinsuflação também pode afetar a dimensão cardíaca, resultando em diminuição do enchimento diastólico e redução da fração de ejeção sistólica.(11)
A importância da comorbidade DCV na DPOC está reconhecida, sugerindo-se um cuidado integrado.(14) O manejo da DCV na DPOC foi abordado nas diretrizes GOLD.(1) Foi demonstrado que as anormalidades cardíacas são altamente prevalentes durante uma exacerbação da DPOC independentemente de doença cardíaca estabelecida ou de fatores de risco cardiovasculares.(13) Portanto, recomenda-se a realização de ecocardiograma para se avaliar a função e estrutura cardíacas quanto à DCV na DPOC durante os estágios agudos e estáveis. (5,14) Os ecocardiogramas revelam várias anormalidades na função cardíaca, como disfunção sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo, aumento dos ventrículos direito e esquerdo, dilatação do átrio esquerdo e hipertensão pulmonar.(15) Uma dificuldade na realização de um ecocardiograma para a verificação de DCV na DPOC é que a presença de aprisionamento aéreo pode impedir a janela acústica ecocardiográfica resultando em imagens insatisfatórias.(16)
Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Pereira et al.(17) tentaram contrastar a função e estrutura cardíacas entre pacientes com DPOC estável e aqueles com exacerbação recente da DPOC por meio do ecocardiograma. No entanto, os resultados não mostraram diferenças na função ou na estrutura cardíacas entre os pacientes com exacerbação recente (no mês anterior) e aqueles com DPOC estável, independentemente de suas condições clínicas. (17) Os autores sugeriram que as semelhanças na função e estrutura cardíacas nessas duas populações se deviam ao fato de que os pacientes com exacerbação recente da DPOC não apresentavam insuficiência respiratória significativa a ponto de causar alterações na função cardíaca. Os autores explicaram ainda que, em 30 dias após uma exacerbação, as alterações cardíacas poderiam ter sido transitórias e voltaram ao normal. Entretanto, na ausência de diferenças nos resultados ecocardiográficos entre os dois grupos, Pereira et al.(17) encontraram função ventricular esquerda prejudicada, aumento da espessura da parede posterior do ventrículo esquerdo e redução da razão entre as velocidades de enchimento diastólico mitral precoce e tardia, que é um índice para avaliar o enchimento diastólico. No entanto, ainda é controverso se as modificações na estrutura do ventrículo esquerdo podem afetar a função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo. Os resultados relativos ainda foram inconclusivos quando comparados aos de estudos anteriores.(13,15)
Pereira et al.(17) também tiveram como objetivo verificar a associação da estrutura e função cardíacas com a capacidade de exercício. Os autores relataram que a capacidade de exercício estava associada à espessura da parede posterior do ventrículo esquerdo e ao índice de volume do átrio direito, sugerindo rigidez ventricular e aumento da pressão de enchimento, o que resultou em capacidade limitada de exercício.(17) No entanto, o efeito da estrutura e função cardíacas na capacidade de exercício não foi demonstrado no estudo(17) devido ao tipo de análise realizada (por exemplo, coeficiente de correlação de Pearson). O efeito da estrutura e função cardíacas na capacidade de exercício deveria ter sido avaliado por meio de análise de regressão, considerando o grau de obstrução das vias aéreas e a função cardíaca como fatores de confusão.
Sabe-se que a capacidade limitada de exercício é um dos sintomas compartilhados pela DPOC e DCV.(14) No entanto, as evidências que sustentam a associação entre capacidade de exercício e função e estrutura cardíacas são limitadas. No enfisema avançado, a capacidade limitada de exercício pode ser resultado de limitação ao fluxo aéreo, comprometimento das trocas gasosas e depleção muscular.(18) Um estudo(15) envolvendo 342 pacientes com DPOC hospitalizados devido à sua primeira exacerbação da DPOC não encontrou associação entre a distância percorrida no teste de caminhada de seis minutos e a presença de anormalidades ecocardiográficas, enquanto Schoos et al.(19) verificaram que uma distância maior percorrida nesse teste apresentou uma correlação independente com regurgitação tricúspide mais leve.(15,19) Mais estudos são necessários sobre a associação da função cardíaca e de sua estrutura com a capacidade de exercício em pacientes com DPOC e DCV concomitantes.
A presença de comorbidades cardiovasculares na DPOC é reconhecida há muito tempo, e sua coexistência produz resultados piores em comparação com cada condição isoladamente.(3,6) Embora o mecanismo preciso da influência dessas duas doenças não seja totalmente compreendido, o manejo das comorbidades relacionadas à DCV está implícito nas diretrizes GOLD.(1) Portanto, uma avaliação completa dos sinais e sintomas de ambas as doenças é recomendada.(5,14) O ecocardiograma é considerado como uma das ferramentas de avaliação úteis e deve ser considerado em casos de DPOC e DCV concomitantes.(5,14,15) Informações sobre a função e estrutura cardíacas podem levar a uma melhor compreensão do mecanismo e, subsequentemente, facilitar o manejo da doença e sua abordagem terapêutica.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
SD: redação do manuscrito. SD, WC, e PT: concepção, revisão e aprovação da versão final.
CONFLITOS DE INTERESSE
Nenhum declarado
REFERÊNCIAS
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