AO EDITOR, A tuberculose (TB) é uma doença infectocontagiosa de evolução crônica causada pelo bacilo intracelular Mycobacterium tuberculosis, cuja transmissão ocorre principalmente pelas vias aéreas pela dispersão de aerossóis expelidos por indivíduos com doença ativa.(1,2) Estima-se que um terço da população mundial esteja infectada com este bacilo e que cerca de 10 milhões de novos casos sejam registrados a cada ano. Além disso, a TB é atualmente a segunda doença infecciosa que mais mata no mundo, com aproximadamente 1,3 milhões de mortes anualmente.(1-3)
Além do componente biológico, a ocorrência da TB está associada a condições precárias de vida, como pobreza, má nutrição e superlotação domiciliar. Essas circunstâncias de vida às quais as pessoas se expõem são conhecidas como determinantes sociais de saúde. (4,5) Tais determinantes, embora dinâmicos, podem ser medidos por meio de indicadores que expressam o grau de desenvolvimento humano e a vulnerabilidade social pragmática da população.(6)
Considerando a necessidade de acompanhar a evolução temporal da doença e fornecer informações sobre o processo de eliminação da TB no país, o objetivo do presente estudo foi de analisar a tendência temporal da incidência de TB nos municípios do Nordeste brasileiro, com base no Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), de 2001 a 2017.
Este estudo ecológico foi realizado no Nordeste brasileiro, região que compreende nove estados e 1.793 municípios. Os seguintes indicadores epidemiológicos foram analisados: taxa anual e média de incidência de TB por 100.000 habitantes de 2001 a 2017. Os dados referentes a casos novos de TB foram obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).
O IVS foi criado para indicar o acesso a ou a insuficiência de bens sociais, cuja posse ou privação determina as condições de bem-estar das populações em áreas do território brasileiro.(6) É composto por 16 variáveis agrupadas nas três seguintes dimensões: i) infraestrutura urbana, ii) capital humano e iii) renda e trabalho. O IVS varia de 0 a 1, onde 0 corresponde à situação social ideal (desejável) e 1, a pior. Os municípios são classificados da seguinte forma: vulnerabilidade social muito baixa (0 a 0,200), baixa (0,200 a 0,300), média (0,300 a 0,400), alta (0,400 a 0,500) e muito alta (maior que 0,500).(10) Os indicadores de vulnerabilidade social foram obtidos do Atlas de Vulnerabilidade Social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA - http://ivs.ipea.gov.br).
A análise de tendência foi realizada com o uso de um modelo de regressão joinpoint. Este modelo avalia se uma linha com vários segmentos é estatisticamente melhor para descrever a evolução temporal de um conjunto de dados do que uma linha reta ou uma linha com menos segmentos. A variação percentual anual (VPA) foi calculada, considerando um intervalo de confiança de 95% e 5% de significância.(7) A análise de tendência foi realizada usando o software Joinpoint Regression, versão 4.5.0.1 (National Cancer Institute, Bethesda, MD, EUA). O estudo não necessitou de aprovação de comitê de ética, pois utilizou dados secundários de domínio público.
Em relação ao IVS-capital humano, os municípios com IVS baixo (n = 6; 0,3%; 40,69/100.000) e médio (n = 67; 3,7%; 38,28/100.000) apresentaram taxas de incidência de TB maiores do que aqueles com IVS alto (n = 443; 24,7%; 25,50/100.000) e muito alto (n = 1277; 71,2%; 23,86/100.000). Três estratos apresentaram tendências decrescentes (baixo, médio e alto), com o maior declínio percentual anual observado no estrato com IVS alto (VPAM: -2,7; 95% CI: -4,0 a -1,5) (Tabela 1).
Em relação ao IVS-renda e trabalho, os municípios com IVS baixo (n = 8; 0,4%; 41,95/100.000) apresentaram uma maior taxa de incidência de TB quando comparados àqueles com IVS muito alto (n = 1320; 73,6%; 23,72/100.000). Apenas os estratos médio, alto e muito alto apresentaram tendências decrescentes ao longo do período estudado (2001 - 2017) (Tabela 1).
O IVS-infraestrutura urbana mostrou comportamento inverso em relação às demais. Os municípios com IVS alto (n = 221; 12,3%; 28,79/100.000) e muito alto (n = 208; 11,6%; 25,14/100.000) apresentaram as maiores taxas de incidência de TB. Três estratos demonstraram tendências decrescentes (alto, baixo e muito baixo). No entanto, as tendências foram estacionárias nos estratos médio (VPAM = -1,9; 95% CI: -4,0 a 0,2) e muito alto (VPAM: -2,1; 95% CI: -4,3 a 0,1), com uma redução percentual maior no estrato muito baixo (VPAM: -3,1; 95% CI: -5,9 a -0,2) (Tabela 1).
É importante ressaltar que a relação entre TB e as condições de vida não é estática. Isso porque, em áreas endêmicas, melhores condições de vida podem resultar em mais diagnósticos e, consequentemente, maiores taxas de incidência, pelo menos em um primeiro momento. Por outro lado, a vulnerabilidade, embora contribua para a manutenção da doença, torna os indivíduos doentes invisíveis para o sistema de saúde, enquanto as boas condições de vida têm efeito contrário.(8)
A baixa escolaridade e a exposição à pobreza, por exemplo, são fatores que dificultam o acesso aos serviços de diagnóstico e tratamento da doença. Se, por um lado, a exposição à vulnerabilidade social mantém ativa a cadeia de transmissão na comunidade, por outro, pode impedir que indivíduos doentes sejam diagnosticados, pois muitos são desconsiderados pelo sistema de saúde, fomentando a subnotificação de dados da doença.(9,10)
Outra questão importante diz respeito à menor capacidade de redução da incidência em municípios com IVS muito alto (Capital Humano e Infraestrutura Urbana). No entanto, já se sabe que para a eliminação dessa doença é necessária uma cobertura de tratamento de pelo menos 90% da forma latente, com o uso de testes de contato e testes rápidos na mesma proporção.(2,5) Essa condição só pode ser alcançada com a melhoria desses indicadores sociais, que refletem a situação de vida da população.
Portanto, os resultados obtidos neste estudo indicam a necessidade urgente de fortalecer as ações locais contra a TB, especialmente em áreas mais vulneráveis.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES JPSP, ABB, MB, RFC e CDFS: concepção e delineamento do estudo. JPSP: coleta de dados e redação da seção Introdução. JPSP, MB e CDFS: coleta de dados, redação das seções Métodos e Resultados e análise estatística. JPSP, ABB, RFC e CDFS: redação da seção Discussão. Todos os autores contribuíram para a versão preliminar e revisaram e aprovaram a versão final do manuscrito.
REFERÊNCIAS 1. WHO. Global tuberculosis report 2019. World Health Organization, editor. Geneva: World Health Organization; 2019. 397 p.
2. Dye C, Glaziou P, Floyd K, Raviglione M. Prospects for Tuberculosis Elimination. Annu Rev Public Health. 2013;34(1):271–86. https://doi.org/10.1146/annurev-pubhealth-031912-114431.
3. Matteelli A, Rendon A, Tiberi S, Al-Abri S, Voniatis C, Carvalho ACC, et al. Tuberculosis elimination: where are we now? Eur Respir Rev. 2018;27(148):180035. https://doi.org/10.1183/16000617.0035-2018.
4. Bertolozzi MR, Takahashi RF, França FO de S, Hino P. The incidence of tuberculosis and its relation to social inequalities: Integrative Review Study on PubMed Base. Esc. Anna Nery. 2020;24(1):1–8. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2018-0367.
5. de Paiva JPS, Magalhães MAFM, Leal TC, da Silva LF, da Silva LG, do Carmo RF, et al. Time trend, social vulnerability, and identification of risk areas for tuberculosis in Brazil: An ecological study. PLoS One. 2022;17(1):e0247894. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0247894.
6. IPEA. Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros. Ipea. 2015. 77 p.
7. Kim HJ, Fay MP, Feuer EJ, Midthune DN. Permutation tests for joinpoint regression with applications to cancer rates. (Erratum in: Stat Med 2001;20: 655). Stat Med. 2000;19(3):335–51. https://doi.org/10.1002/(sici)1097-0258(20000215)19:3<335::aid-sim336>3.0.co;2-z.
8. Souza CDF de. Hanseníase e determinantes sociais da saúde: uma abordagem a partir de métodos quantitativos - Bahia, 2001-2015. Fundação Oswaldo Cruz. Instituto Aggeu Magalhães. Recife, PE, Brasil.; 2018.
9. Viegas APB, Carmo RF, Luz ZMP. Factors associated to the access to health services from the point of view of professional and users of basic reference unit. Saude Soc. 2015;24(1):100–12. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100008.
10. Travassos C, Oliveira EXG, Viacava F. Geographic and social inequalities in the access to health services in Brazil: 1998 and 2003. Cienc. Saúde Coletiva. 2006;11(4):975–86. https://doi.org/10.1590/S1413-81232006000400019.