AO EDITOR, A proteinose alveolar pulmonar (PAP) é uma entidade rara caracterizada pelo acúmulo alveolar de lipoproteínas, secundária à disfunção de macrófagos, que leva ao comprometimento da depuração do surfactante. De acordo com o mecanismo patogenético e a etiologia responsável, a doença pode ser classificada em três grupos distintos: primária (autoimune ou hereditária), secundária e congênita.(1,2) Além disso, todas as etiologias estão associadas à desregulação da ativação e diferenciação de células de defesa pulmonar, principalmente macrófagos alveolares, resultando em maior predisposição ao desenvolvimento de infecções pulmonares oportunistas. Nos últimos anos, a COVID-19 tornou-se a principal causa de insuficiência respiratória em todo o mundo, com potencial para determinar piores desfechos em pacientes com doença pulmonar prévia.(3)
Um estudo multicêntrico internacional(4) mostrou que pacientes com doença pulmonar intersticial têm risco aumentado de morte por COVID-19 quando comparados com pacientes sem doença pulmonar intersticial ou outra doença pulmonar crônica (mortalidade geral = 49% e 35%, respectivamente; p = 0,013), principalmente aqueles com função pulmonar comprometida (CVF < 80% do previsto) e obesidade. No entanto, existem poucos dados sobre COVID-19 e doenças pulmonares raras. Séries recentes(5,6) envolvendo pacientes com linfangioleiomiomatose e PAP mostraram taxas maiores de hospitalização nessas populações (aproximadamente um terço dos pacientes em ambos os estudos).
Embora não tenha sido possível quantificar anticorpos anti-GM-CSF, visto que não havia um distúrbio subjacente causador de PAP secundária (doenças hematológicas, defeitos imunológicos ou exposições inalatórias), relatamos aqui os casos de dois pacientes com PAP autoimune presumível e COVID-19. A primeira paciente era uma mulher de 46 anos com PAP estável, diagnosticada 9 anos antes, submetida a lavagem pulmonar total (LPT) quatro anos antes. Após a LPT, a SpO2 basal permaneceu estável em 95% em ar ambiente. Deu entrada no pronto-socorro com queixa de dispneia há uma semana, febre (38°C), taquicardia e SpO2 = 80% em ar ambiente. A TC de tórax, quando comparada com a realizada cinco meses antes, mostrou aumento da extensão das opacidades em vidro fosco difusas bilaterais e espessamento dos septos interlobulares e intralobulares, compatíveis com padrão de pavimentação em mosaico (Figuras 1A e 1B). O PCR nasofaríngeo para SARS-CoV-2 foi positivo. A paciente foi tratada inicialmente com metilprednisolona (1 mg/kg por dia), ceftriaxona mais azitromicina e oxigênio suplementar via cânula nasal. Após uma semana, apresentou melhora clínica parcial, mas persistiu com SpO2 = 83-85% em ar ambiente. A seguir, foi realizada inicialmente LPT no pulmão esquerdo com infusão de 30 litros de solução salina 0,9% a 37°C, sendo a paciente posteriormente encaminhada à UTI. Duas semanas depois, o mesmo procedimento foi realizado no pulmão direito. Após uma semana, apresentou melhora clínica progressiva (SpO2 = 92% em ar ambiente). Recebeu alta após 49 dias de internação. A TC de tórax na alta demonstrou redução significativa da extensão das opacidades pulmonares (Figura 1C).
O segundo paciente era um homem de 48 anos, diagnosticado com PAP há 5 anos e submetido a uma LPT três anos antes. Deu entrada no pronto-socorro com queixa de odinofagia e febre há 5 dias, evoluindo posteriormente com dispneia e tosse seca. A SpO2 estava em 88% em ar ambiente e o PCR para SARS-CoV-2 foi positivo. Seis meses antes, ele estava estável, e SpO2 era de 95% em ar ambiente. As imagens de TC, quando comparadas com as realizadas nove meses antes, demonstraram aumento da extensão das opacidades em vidro fosco difusas bilaterais com espessamento dos septos interlobulares e intralobulares, confirmando a identificação do padrão de pavimentação em mosaico (Figuras 1D e 1E). Foi tratado inicialmente com oxigênio suplementar via cânula nasal e metilprednisolona (1 mg/kg por dia). O paciente apresentou melhora clínica importante e recebeu alta 10 dias após a internação (SpO2 = 93% em ar ambiente). No entanto, necessitou de oxigênio suplementar para realizar suas atividades diárias e está em acompanhamento ambulatorial, repetindo a TC de tórax dois meses após a alta (Figura 1F).
Poucos estudos descreveram a combinação de PAP e COVID-19 e nenhum, até onde sabemos, descreveu o desempenho da LPT em pacientes com ambas as doenças. Um recente estudo multicêntrico europeu(6) descreveu a incidência e os resultados de pacientes com PAP coinfectados com COVID-19. Apesar de apresentarem taxas semelhantes de COVID-19 quando comparados com a população geral (cerca de 15%), os pacientes com PAP apresentavam maior risco de internação e morte (35% necessitaram de internação, quase 50% desses na UTI e, destes, 27% morreram ou foram submetidos a transplante de pulmão). O tratamento com GM-CSF inalatório foi interrompido em todos os pacientes, e nenhum paciente foi submetido à LPT durante a internação.(6)
Alguns estudos avaliaram a relação entre COVID-19 e o papel do GM-CSF.(7) Nos estágios iniciais da infecção, o papel do GM-CSF pode ser protetor, pois ajudaria a limitar as lesões relacionadas ao vírus. No entanto, nas fases posteriores da COVID-19, a liberação inadequada de várias citocinas (tempestade de citocinas), incluindo IL-6 e GM-CSF, predispõe à lesão pulmonar inflamatória e, finalmente, à SDRA.(7)
O manejo da PAP depende de sua etiologia e gravidade e visa aliviar os sintomas, melhorar a oxigenação e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Pacientes assintomáticos ou com sintomas leves não requerem tratamento imediato e podem ser acompanhados com reavaliação periódica. No entanto, em pacientes com doença moderada a grave e insuficiência respiratória progressiva, o tratamento padrão ouro é a LPT.(1,2) Em pacientes com PAP autoimune, uma associação com terapias experimentais, como GM-CSF recombinante (subcutâneo ou inalatório), rituximabe ou plasmaferese. pode ser realizada. Em casos refratários selecionados, o transplante pulmonar pode ser uma opção.(8)
Ressalta-se também que os dois casos aqui relatados apresentavam doença estável há anos e foram internados com piora significativa dos sintomas respiratórios, hipoxemia e aumento da extensão das opacidades tomográficas, provavelmente secundárias à COVID-19. Além disso, os achados de imagem foram insuficientes para diferenciar a piora da PAP da COVID-19. Nenhum dos dois recebeu terapia com GM-CSF, uma vez que não está disponível em nosso centro; no entanto, uma paciente foi submetida à LPT, indicada pela presença de hipoxemia persistente.
Em conclusão, ainda não se sabe se a piora clínica e tomográfica observada nesses dois pacientes estava relacionada à própria COVID-19 ou se houve ativação da PAP desencadeada pela infecção. O curso da PAP é variável, e o prognóstico é imprevisível. Além disso, a COVID-19 pode determinar exacerbação dos sintomas e piora da TC em pacientes com PAP, e a LPT pode ser uma opção nesse cenário, principalmente em centros com baixa disponibilidade de terapia com GM-CSF.
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES PFBC: desenho do estudo; coleta de dados; redação e revisão do manuscrito; e aprovação da versão final do manuscrito. NFS: coleta de dados; redação do manuscrito; e aprovação da versão final do manuscrito. RAK: desenho do estudo; revisão do manuscrito; e aprovação da versão final do manuscrito. BGB: desenho do estudo; redação e revisão do manuscrito; e aprovação da versão final do manuscrito.
CONFLITO DE INTERESSE Nenhum declarado.
REFERÊNCIAS 1. Trapnell BC, Nakata K, Bonella F, Campo I, Griese M, Hamilton J, et al. Pulmonary alveolar proteinosis. Nat Rev Dis Primers. 2019;5(1):16. https://doi.org/10.1038/s41572-019-0066-3
2. McCarthy C, Carey BC, Trapnell BC. Autoimmune Pulmonary Alveolar Proteinosis. Am J Respir Crit Care Med. 2022;205(9):1016-1035. https://doi.org/10.1164/rccm.202112-2742SO
3. Beltramo G, Cottenet J, Mariet AS, Georges M, Piroth L, Tubert-Bitter P, et al. Chronic respiratory diseases are predictors of severe outcome in COVID-19 hospitalised patients: a nationwide study. Eur Respir J. 2021;58(6):2004474. https://doi.org/10.1183/13993003.04474-2020
4. Drake TM, Docherty AB, Harrison EM, Quint JK, Adamali H, Agnew S, et al. Outcome of Hospitalization for COVID-19 in Patients with Interstitial Lung Disease. An International Multicenter Study. Am J Respir Crit Care Med. 2020;202(12):1656-1665. https://doi.org/10.1164/rccm.202007-2794OC
5. Baldi BG, Radzikowska E, Cottin V, Dilling DF, Ataya A, Carvalho CRR, et al. COVID-19 in Lymphangioleiomyomatosis: An International Study of Outcomes and Impact of Mechanistic Target of Rapamycin Inhibition. Chest. 2022;161(6):1589-1593. https://doi.org/10.1016/j.chest.2021.12.640
6. Papiris SA, Campo I, Mariani F, Kallieri M, Kolilekas L, Pappaioannou AI, et al. COVID-19 in patients with Pulmonary Alveolar Proteinosis: A European multicenter study. ERJ Open Res. 2022;00199-2022. Published 2022 Jul 14. https://doi.org/10.1183/23120541.00199-2022
7. Bonaventura A, Vecchié A, Wang TS, Lee E, Cremer PC, Carey B, et al. Targeting GM-CSF in COVID-19 Pneumonia: Rationale and Strategies. Front Immunol. 2020;11:1625. https://doi.org/10.3389/fimmu.2020.01625
8. Tazawa R, Ueda T, Abe M, Tatsumi K, Eda R, Kondoh S, et al. Inhaled GM-CSF for Pul-monary Alveolar Proteinosis. N Engl J Med. 2019;381(10):923-932. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1816216