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Cartas ao Editor

Bronquiolite constritiva secundária à exposição a agentes aromatizantes: um risco ocupacional pouco conhecido

Constrictive bronchiolitis secondary to exposure to flavoring agents: a little known occupational hazard

Gustavo Corrêa de Almeida1, Rafael Futoshi Mizutani1, Mario Terra-Filho1, Ubiratan de Paula Santos1

DOI: 10.36416/1806-3756/e20220328

 
AO EDITOR,
 
Bronquiolite é um termo genérico aplicado a um grupo heterogêneo de doenças que acometem as pequenas vias aéreas (diâmetro interno ≤ 2 mm), resultando em inflamação e/ou fibrose.(1) Essa entidade diversificada tem várias apresentações com etiologias e prognósticos evolutivos variados. A classificação é geralmente baseada no padrão histopatológico subjacente, que normalmente se correlaciona com as apresentações clínicas e radiológicas.(2) Os padrões mais comuns são bronquiolite respiratória, bronquiolite aguda, bronquiolite folicular, bronquiolite aspirativa difusa, panbronquiolite difusa e bronquiolite constritiva.(2) Propõe-se que a bronquiolite constritiva, também denominada bronquiolite obliterante, tenha um mecanismo patogênico de resposta anormal decorrente da lesão e inflamação das células epiteliais e de estruturas subepiteliais das pequenas vias aéreas, levando à fibroproliferação excessiva e redução de seu lúmen.(3) Entre as causas estão doenças autoimunes, sequelas após infecções virais, doença do enxerto contra o hospedeiro após transplante de células-tronco hematopoiéticas, síndrome de bronquiolite obliterante após transplante pulmonar, toxicidade medicamentosa, doenças inflamatórias intestinais, pênfigo paraneoplásico e exposição a e inalação de produtos químicos voláteis. (2,3) Exposições a agentes químicos incluem as de origem ocupacional, e dentre elas, destacam-se a exposição a diacetil (2,3-butanodiona) e 2-3-pentanodiona. A associação do diacetil, utilizado na indústria alimentícia como aromatizante por apresentar sabor e aroma semelhantes aos da manteiga, com bronquiolite constritiva foi inicialmente descrita em 2002 na indústria de pipoca de micro-ondas.(4) Desde então, vários outros casos foram diagnosticados, não apenas nessa atividade, mas também na fabricação de aromatizantes, produção de salgadinhos, produção de ração para animais de estimação, torrefação de café e fábricas de embalagem.(5) Estudos em animais indicaram que o epitélio respiratório sofre diretamente com a toxicidade de diacetil e 2-3-pentanodiona após sua inalação. O dano tecidual persistente pode levar ao reparo anormal do epitélio das vias aéreas, causando fibrose intraluminal e resultando em bronquiolite constritiva.(6)
 
Dois homens de 21 e 36 anos (pacientes A e B, respectivamente), sem comorbidades conhecidas e sem histórico de tabagismo foram encaminhados ao nosso hospital para avaliação. Ambos trabalhavam em uma fábrica de aditivos para alimentos e cosméticos na região metropolitana de São Paulo e desenvolveram dispneia progressiva aos esforços, tosse e sibilância após o início da exposição. O paciente A apresentou sintomas 1 ano após o início do trabalho, sendo afastado da exposição 1 ano após o início dos sintomas, e o paciente B desenvolveu sintomas após 2 anos de exposição e foi afastado 6 meses depois.
 
O trabalho envolvia misturar aromatizantes concentrados com produtos em pó como diluentes. A mistura era realizada manualmente, seguida de moagem e peneiramento, e, em seguida, o produto era acondicionado em uma sala de 20 m2. A sala continha um moinho, um misturador, uma peneira e uma balança, e quatro a cinco trabalhadores trabalhavam no local simultaneamente. Durante o período de trabalho, os trabalhadores utilizavam máscaras N95 com trocas diárias. Durante uma visita ao local de trabalho, constataram-se ventilação natural precária e falta de exaustão nos processos. As roupas dos trabalhadores durante o trabalho tinham fortes odores dos agentes aromatizantes utilizados e estavam sujas de poeira. Verificou-se que em áreas contíguas à sala onde trabalhavam eram armazenados centenas de aromatizantes com os mais diversos aromas e sabores, inclusive o de manteiga.
 
A TCAR de tórax de ambos os pacientes mostrou sinais de espessamento das paredes das vias aéreas, bronquiectasias, atenuação em mosaico e hiperinsuflação pulmonar (Figura 1). A avaliação funcional com testes de função pulmonar por pletismografia e medida de DLCO revelou a presença de acentuado distúrbio ventilatório obstrutivo fixo com evidência de aprisionamento aéreo e doença de pequenas vias aéreas demonstrada por alta resistência específica das vias aéreas, elevação do VR e da relação VR/CPT nos dois pacientes. O paciente A teve uma redução acentuada da DLCO, enquanto a DLCO do paciente B estava dentro dos limites normais.
 

 
A pesquisa de doenças autoimunes e de sorologia para HIV, hepatite B e hepatite C apresentou resultados negativos. O paciente B havia feito broncoscopia com biópsia transbrônquica em outro serviço; no entanto, houve uma complicação (pneumotórax). Os achados anatomopatológicos foram inconclusivos devido à escassez de material.
 
O diagnóstico de bronquiolite constritiva secundária à exposição ao diacetil foi estabelecido com base na história clínica, avaliação funcional, achados de imagem e anamnese ocupacional. Ambos os pacientes foram afastados da exposição. O paciente A iniciou tratamento com corticosteroides (prednisona, 1 mg/kg por dia) por 15 dias com redução da dose ao longo de três meses, porém não apresentou melhora dos parâmetros clínicos ou funcionais. Em ambos os pacientes foi instituído tratamento com broncodilatadores de longa duração e azitromicina três vezes por semana, com melhora clínica discreta, mas sem melhora nos testes de função pulmonar. Os dois pacientes foram encaminhados para avaliação para transplante pulmonar. No momento da redação deste artigo, o paciente A estava na lista de espera, enquanto o paciente B ainda estava sob avaliação.
 
A tentativa de investigar a existência de outros trabalhadores acometidos por esse tipo de exposição na mesma fábrica enfrentou a resistência de seus responsáveis; eles forneceram alguns dados como testes de espirometria, mas esses dados foram insuficientes para uma análise adequada devido à má qualidade dos testes.
 
A bronquiolite constritiva secundária à exposição a agentes aromatizantes é uma doença potencialmente grave, mas evitável. A primeira série de casos brasileira sobre trabalhadores expostos em uma fábrica de biscoitos foi publicada em 2012,(7) mas há escassez de literatura nacional desde então. No hemisfério norte, vários estudos de vigilância epidemiológica em empresas relacionadas ao uso de aromatizantes têm diagnosticado vários casos.(5)
 
Os sintomas mais comumente relatados são dispneia aos esforços e tosse seca que pode se manifestar meses ou anos após o início da exposição.(5) A alteração funcional mais comum na espirometria é o distúrbio respiratório obstrutivo, mas os resultados podem ser normais ou revelar distúrbios restritivos ou mistos.(5,8) A TCAR de tórax demonstra atenuação em mosaico, compatível com aprisionamento aéreo.(5,8) Na maioria dos casos, o diagnóstico pode ser estabelecido pela análise da história de exposição, presença de sintomas e resultados de testes de função pulmonar. A retirada precoce da exposição pode interromper a progressão da doença.(5)
 
A motivação desta carta é destacar que, durante a avaliação de pacientes com bronquiolite, deve-se atentar para as causas ocupacionais, e a identificação de um caso sentinela deve ser vista como um sinal para a investigação de outros trabalhadores em risco, indicando a necessidade da adoção de medidas de controle de exposição, como ventilação local com exaustão. Por fim, recentemente foi identificada a presença de diacetil e outros aromatizantes em cigarros eletrônicos e soluções utilizadas em vaping.(9) Esse fato deve ser visto com preocupação, dada a possibilidade de desenvolvimento de um padrão semelhante de bronquiolite obliterante entre indivíduos com exposição crônica a aerossóis de soluções contendo agentes aromatizantes em cigarros eletrônicos.(10,11)
 
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
 
GCA: concepção do estudo; coleta de dados; e redação do manuscrito. RFM: revisão do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Nenhum declarado.
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Ryu JH, Myers JL, Swensen SJ. Bronchiolar disorders. Am J Respir Crit Care Med. 2003;168(11):1277-1292. https://doi.org/10.1164/rccm.200301-053SO
2.            Ryu JH, Azadeh N, Samhouri B, Yi E. Recent advances in the understanding of bronchiolitis in adults. F1000Res. 2020;9:F1000 Faculty Rev-568. https://doi.org/10.12688/f1000research.21778.1
3.            Barker AF, Bergeron A, Rom WN, Hertz MI. Obliterative bronchiolitis. N Engl J Med. 2014;370(19):1820-1828. https://doi.org/10.1056/NEJMra1204664
4.            Kreiss K, Gomaa A, Kullman G, Fedan K, Simoes EJ, Enright PL. Clinical bronchiolitis obliterans in workers at a microwave-popcorn plant. N Engl J Med. 2002;347(5):330-338. https://doi.org/10.1056/NEJMoa020300
5.            Nett RJ, Harvey RR, Cummings KJ. Occupational Bronchiolitis: An Update. Clin Chest Med. 2020;41(4):661-686. https://doi.org/10.1016/j.ccm.2020.08.011
6.            Hubbs AF, Kreiss K, Cummings KJ, Fluharty KL, O’Connell R, Cole A, et al. Flavorings-Related Lung Disease: A Brief Review and New Mechanistic Data. Toxicol Pathol. 2019;47(8):1012-1026. https://doi.org/10.1177/0192623319879906
7.            Cavalcanti Zdo R, Albuquerque Filho AP, Pereira CA, Coletta EN. Bronchiolitis associated with exposure to artificial butter flavoring in workers at a cookie factory in Brazil. J Bras Pneumol. 2012;38(3):395-399. https://doi.org/10.1590/S1806-37132012000300016
8.            Kreiss K. Occupational causes of constrictive bronchiolitis. Curr Opin Allergy Clin Immunol. 2013;13(2):167-172. https://doi.org/10.1097/ACI.0b013e32835e0282
9.            Allen JG, Flanigan SS, LeBlanc M, Vallarino J, MacNaughton P, Stewart JH, et al. Flavoring Chemicals in E-Cigarettes: Diacetyl, 2,3-Pentanedione, and Acetoin in a Sample of 51 Products, Including Fruit-, Candy-, and Cocktail-Flavored E-Cigarettes. Environ Health Perspect. 2016;124(6):733-739. https://doi.org/10.1289/ehp.1510185
10.          Jonas A. Impact of vaping on respiratory health. BMJ. 2022;378:e065997. https://doi.org/10.1136/bmj-2021-065997
11.          Hariri LP, Flashner BM, Kanarek DJ, O’Donnell WJ, Soskis A, Ziehr DR, et al. E-Cigarette Use, Small Airway Fibrosis, and Constrictive Bronchiolitis. NEJM Evid. 2022;1(6). https://doi.org/10.1056/EVIDoa2100051

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