ABSTRACT
Objective: Obstructive sleep apnea (OSA) is a highly prevalent chronic disease, associated with morbidity and mortality. Although effective treatment for OSA is commercially available, their provision is not guaranteed by lines of care throughout Brazil, making legal action necessary. This study aimed at presenting data related to the volume of legal proceedings regarding the access to diagnosis and treatment of OSA in Brazil. Methods: This was a descriptive study of national scope, evaluating the period between January of 2016 and December of 2020. The number of lawsuits was analyzed according to the object of the demand (diagnosis or treatment). Projections of total expenses were carried out according to the number of lawsuits. Results: We identified 1,462 legal proceedings (17.6% and 82.4% related to diagnosis and treatment, respectively). The projection of expenditure for OSA diagnosis in the public and private spheres were R$575,227 and R$188,002, respectively. The projection of expenditure for OSA treatment in the public and private spheres were R$2,656,696 and R$253,050, respectively. There was a reduction in the number of lawsuits between 2017 and 2019. Conclusions: Legal action as a strategy for accessing diagnostic and therapeutic resources related to OSA is a recurrent practice, resulting in inefficiency and inequity. The reduction in the number of lawsuits between 2017 and 2019 might be explained by the expansion of local health care policies or by barriers in the journey of patients with OSA, such as difficulties in being referred to specialized health care and low availability of diagnostic resources.
Keywords:
Sleep apnea, obstructive; Continuous positive airway pressure; Polysomnography; Health services accessibility.
RESUMO
Objetivo: A apneia obstrutiva do sono (AOS) é uma doença crônica altamente prevalente, associada a morbidade e mortalidade. Embora tratamentos efetivos para a AOS estejam disponíveis comercialmente, seu fornecimento não é garantido pelos fluxos de atendimento em todo o Brasil, tornando necessária a judicialização. Este estudo teve como objetivo apresentar dados referentes ao volume de processos judiciais relacionados ao acesso ao diagnóstico e tratamento da AOS no Brasil. Métodos: Estudo descritivo de abrangência nacional, avaliando o período entre janeiro de 2016 e dezembro de 2020. O número de demandas judiciais foi analisado de acordo com o objeto da demanda (diagnóstico ou tratamento). As projeções das despesas totais foram realizadas de acordo com o número de demandas judiciais. Resultados: Foram identificados 1.462 processos judiciais (17,6% e 82,4% referentes a diagnóstico e tratamento, respectivamente). A projeção dos gastos com o diagnóstico da AOS nas esferas pública e privada foi de R$ 575.227 e R$ 188.002, respectivamente. A projeção dos gastos com o tratamento da AOS nas esferas pública e privada foi de R$ 2.656.696 e R$ 253.050, respectivamente. Houve redução do número de demandas judiciais entre 2017 e 2019. Conclusões: A judicialização como estratégia de acesso a recursos diagnósticos e terapêuticos relacionados à AOS é uma prática recorrente, resultando em ineficiência e iniquidade. A redução do número de demandas judiciais entre 2017 e 2019 pode ser explicada pela expansão das políticas locais de saúde ou por barreiras na jornada dos pacientes com AOS, como dificuldades de encaminhamento para atendimento especializado e a baixa disponibilidade de recursos diagnósticos.
Palavras-chave:
Apneia obstrutiva do sono; Pressão positiva contínua nas vias aéreas; Polissonografia; Acesso aos serviços de saúde.
INTRODUÇÃO O acesso à saúde é um direito garantido ao cidadão brasileiro pela Constituição Federal de 1988.(1) O artigo 196 dispõe que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas [...]”. Nesse sentido, a Portaria do Ministério da Saúde/Gabinete do Ministro n. 4.279/2010, que estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), visa promover a integração sistêmica de ações e serviços de saúde, garantindo a provisão de atenção contínua, integral, responsável, humanizada e de qualidade.(2)
O processo de incorporação de tecnologias no SUS é realizado por uma agência do Ministério da Saúde denominada Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). A Conitec realiza a avaliação para incorporação de tecnologias em saúde por meio da análise de efetividade, segurança, custo-efetividade e impacto orçamentário. As tecnologias incorporadas após o processo de avaliação passam a fazer parte da Relação Nacional de Medicamentos ou da Relação Nacional de Equipamentos e Materiais Permanentes Financiáveis para o SUS. Juntas, as relações desses produtos e serviços são disponibilizadas aos usuários do SUS em conformidade com as recomendações sobre fluxos específicos de atendimento, apresentadas nos Protocolos Clínicos de Diretrizes Terapêuticas.
A apneia obstrutiva do sono (AOS) é uma doença crônica altamente prevalente. A AOS é caracterizada pela obstrução parcial ou completa das vias aéreas superiores durante o sono, contribuindo para um sono fragmentado e de má qualidade.(3) No Brasil, estima-se que a AOS afete 50 milhões de habitantes.(4) Essa condição promove impacto negativo na qualidade de vida(5) e está associada a condições clínicas como hipertensão arterial sistêmica,(6) infarto agudo do miocárdio,(7) fibrilação atrial,(8) acidente vascular cerebral,(9) diabetes mellitus,(10) acidentes automobilísticos(11) e acidentes de trabalho.(12) Apesar da alta prevalência de AOS e da associação da doença com morbidade e mortalidade, a assistência aos pacientes com AOS não está incluída nos protocolos de atendimento à saúde e nem é garantida pelos fluxos de atendimento ou redes estabelecidas nacionalmente no Brasil.
A judicialização é uma estratégia que os usuários dos sistemas de saúde no Brasil têm empregado como forma de conseguir acesso a procedimentos diagnósticos e terapêuticos incorporados que não estão efetivamente disponíveis, bem como a tecnologias não incorporadas. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, entre 2008 e 2017, houve 498.715 demandas judiciais referentes à saúde em primeira instância.(13) Dentre essas demandas judiciais, 55,6%, 47,1% e 33,1%, respectivamente, eram referentes ao acesso a tecnologias diagnósticas, procedimentos e suprimentos ou materiais. A análise temporal do volume de ações judiciais mostrou um aumento de aproximadamente 130% no número de processos judiciais referentes à saúde entre 2008 a 2017.(13)
Os dispositivos de pressão positiva nas vias aéreas (PAP, do inglês positive airway pressure) são considerados a tecnologia mais efetiva para o tratamento de casos moderados a graves de AOS. Embora essa tecnologia tenha sido oficialmente incorporada pela Conitec, com fornecimento de dispensação pelos estados e pelo Distrito Federal, o efetivo fornecimento da tecnologia depende de termos locais de cooperação com os órgãos responsáveis. Nesse cenário, a judicialização se expressa como estratégia para a obtenção de atendimento especializado. Este estudo teve como objetivo apresentar dados referentes ao volume de processos judiciais relacionados ao acesso ao diagnóstico e tratamento da AOS no Brasil.
MÉTODOS Trata-se de um estudo descritivo com dados secundários coletados em todo o país entre janeiro de 2016 e dezembro de 2020. A identificação e avaliação dos processos judiciais referentes ao acesso ao diagnóstico e/ou tratamento da AOS foram realizadas em quatro fases (Quadro 1).
Na fase 1, foram desenvolvidas duas estratégias de busca. Os termos de busca para diagnóstico da AOS foram “Polysomnography”, “Polysomnogram”, “PSG” e “Sleep Apnea Diagnosis”, enquanto os para tratamento da AOS foram “CPAP”, “CEPAP”, “BILEVEL”, “BIPAP” e “Positive Pressure”. As fontes de informação foram tribunais de justiça da primeira e segunda instâncias nas esferas nacional, estadual e do Distrito Federal no Brasil.
A fase 2 envolveu a realização de buscas nos bancos de dados dos tribunais de justiça no período definido para a análise. Os dados das demandas judiciais potencialmente referentes ao diagnóstico e/ou tratamento da AOS foram recuperados para posterior análise e consolidação.
Na fase 3, realizou-se a extração manual das informações referentes aos processos judiciais e a consolidação dessas informações, que foram inseridas em planilhas do Microsoft Excel. As variáveis compiladas incluíram data, tribunal de origem, região geográfica, número do registro profissional do médico prescritor, valor monetário incorrido, objeto da demanda (diagnóstico ou tratamento) e tipo de dispositivo pleiteado.
A Fase 4 envolveu a análise das informações obtidas junto ao Departamento de Informática do SUS: região geográfica (do demandante e do tribunal de justiça), presença de protocolos e/ou diretrizes regionais para fornecimento de CPAP, e número de registro no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde da instituição de saúde (o demandado). Também foram levantados dados do Conselho Federal de Medicina sobre os médicos prescritores quanto a registro como especialista em medicina do sono na Associação Médica Brasileira.
O número de demandas judiciais foi apresentado em frequência absoluta e relativa por região geográfica. Os dados referentes aos montantes incorridos nos processos judiciais foram apresentados de acordo com o tipo de sistema de saúde (público ou privado) por meio de medidas de tendência central e de dispersão. Para a estimativa das despesas totais associadas aos processos judiciais, incluindo aqueles sem relato das despesas incorridas, foi feita uma projeção utilizando a mediana das despesas conhecidas. Além disso, foi realizada uma análise de sensibilidade determinística do tipo melhor caso, utilizando o primeiro quartil para a projeção dos gastos totais, bem como uma análise de sensibilidade determinística do tipo pior caso, utilizando o terceiro quartil para a projeção dos gastos totais.
RESULTADOS O presente estudo identificou um total de 1.462 casos de processos judiciais referentes à AOS, sendo 258 (17,6%) relacionados a diagnóstico e 1.204 (82,4%) relacionados a tratamento. No total, apenas 59,4% dos registros relatavam os valores monetários incorridos. Destes, 36,4% eram referentes ao diagnóstico e 64,4%, ao tratamento da AOS (Figura 1). Ao longo do período analisado, houve uma tendência de queda no número de demandas judiciais referentes ao tratamento e diagnóstico da AOS, com redução de mais de 50% no número de demandas judiciais em 2019 em relação a 2017. A distribuição das demandas judiciais entre as regiões geográficas do Brasil é apresentada na Tabela 1.
A análise da distribuição de processos judiciais por estado e Distrito Federal mostrou uma concentração de processos em São Paulo (n = 780; 53%); Minas Gerais (n = 263; 18%); Rio Grande do Sul (n = 171; 12%); Rio de Janeiro (n = 77; 5%); e Distrito Federal (n = 30; 2%). Eles foram responsáveis por 91% do total de casos no período estudado. Considerando-se o número de demandas judiciais por milhão de habitantes, a taxa da região Sudeste foi 1,8 vez maior do que a do país inteiro (10,6 por milhão de habitantes vs. 5,7 por milhão de habitantes).
Das 1.462 demandas judiciais, 1.383 (94%) eram contra governos, 70 (5%) eram contra provedores de saúde privados e 9 (1%) estavam sob sigilo. Das demandas judiciais contra governos, 720 (52%), 654 (47%) e 9 (1%), respectivamente, deram-se em nível municipal, estadual e federal.
Análise dos processos judiciais referentes ao diagnóstico da AOS A análise dos processos judiciais referentes ao diagnóstico da AOS mostrou que o estado de Minas Gerais ficou em primeiro lugar (n = 102; 40%), seguido por São Paulo (n = 57; 22%), Rio Grande do Sul (n = 22; 9%), Rio de Janeiro (n = 20; 8%) e Goiás (n = 9; 3%).
A polissonografia é o procedimento diagnóstico para AOS e está identificada no Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS (SIGTAP). A análise mostrou que 87 processos judiciais (34%) eram originários de municípios onde o procedimento está disponível em serviços de saúde públicos ou privados, enquanto 171 (66%) eram originários de municípios onde esse procedimento não é oferecido aos usuários do SUS.
Em 94 processos judiciais (36,4%), foi possível identificar as despesas associadas ao recurso solicitado. O valor monetário foi analisado separadamente de acordo com o tipo de demandado em questão (público ou privado). A judicialização envolvia a esfera pública e privada em 83 e 11 demandas judiciais, respectivamente. Para as demandas judiciais envolvendo entes públicos, correspondendo a 78 (89%) dos registros, as despesas projetadas relativas a todas as demandas judiciais, calculadas após a imputação da mediana para as demandas judiciais sem referência à despesa incorrida, foi de R$ 575.227 para o caso base. A análise de sensibilidade mostrou despesas variando de R$ 542.747 a R$ 1.031.227 no melhor e pior cenários. No sistema privado de saúde, os gastos totais foram estimados em R$ 188.002, e as análises de sensibilidade variaram de R$ 168.906 a R$ 202.330 (Tabela 2).
Análise dos processos judiciais referentes ao tratamento da AOS Perfil do médico responsável pela prescrição do tratamento Foi possível identificar o médico que prescreveu o tratamento em 424 demandas judiciais (29,0%). Destes, 104 médicos solicitantes (24,6%) eram considerados especialistas em medicina do sono pela Associação Médica Brasileira, enquanto 320 não tinham especialização na área. Conseguimos identificar as especialidades de 297 médicos. As mais comuns foram otorrinolaringologia, em 28,3%; pneumologia, em 18,2%; e neurologia, em 13,1%. Havia também cardiologistas (2,7%), clínicos gerais (2,7%), psiquiatras (1,7%) e médicos do trabalho (1,3%).
Tipos de dispositivos de PAP solicitados e despesas incorridas Dispositivos de CPAP e BiPAP foram pleiteados em 1.117 (95,8%) e 36 (3,0%) das demandas judiciais, respectivamente. Não foi possível identificar o tipo de dispositivo solicitado em 1,2% dos casos. Aproximadamente 64% das demandas judiciais apresentavam os montantes das despesas incorridas.
As despesas associadas à CPAP, tanto na esfera pública quanto na privada, foram classificadas como despesas com aquisição ou locação de equipamentos. Na esfera pública, 210 das 624 demandas judiciais (34%) eram referentes à aquisição, enquanto 414 (66%) eram referentes à locação.
Para os casos envolvendo entes públicos, o valor projetado referente à aquisição dos dispositivos, com a imputação da mediana para os casos sem referência à despesa incorrida, foi de R$ 1.340.781; as análises de sensibilidade variaram de R$ 1.284.769 a R$ 1.443.229. Com relação à locação de equipamentos, as despesas totais incorridas foram estimadas em R$ 574.525. Incluindo a projeção das demandas judiciais nas quais não foi mencionado o tipo de arranjo (ou seja, aquisição ou locação), de acordo com os percentuais observados nas demandas judiciais nas quais essa informação estava presente, encontramos uma despesa total de R$ 2.656.696, e a análise de sensibilidade variou de R$ 2.503.032 a R$ 2.937.754.
No sistema privado de saúde, os gastos totais com demandas judiciais referentes ao tratamento da AOS foram estimados em R$ 253.050, e as análises de sensibilidade variaram de R$ 211.191 a R$ 349.763 (Tabela 3).
DISCUSSÃO Nossos achados demonstram que a judicialização como forma de acesso a recursos diagnósticos e terapêuticos para AOS é uma prática comum, tanto na esfera pública quanto na privada. O tratamento com o dispositivo de PAP é considerado a primeira linha de tratamento para casos moderados a graves, além de ser considerado custo-efetivo.(14) A ausência de fluxos de atendimento bem definidos e de diretrizes públicas nacionais para uma condição altamente prevalente, potencialmente tratável e com significativa sobrecarga associada é uma demonstração da restrição de um sistema de saúde integral, um dos princípios básicos do SUS.
A judicialização da saúde tem se tornado uma prática cada vez mais comum para obter acesso à saúde no Brasil. Em um estudo realizado no estado de Minas Gerais, a maioria das demandas judiciais era referente a medicamentos de alto custo, aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, para linhas mais avançadas de tratamento para condições clínicas como artrite reumatoide e espondilite anquilosante.(15) No mesmo estudo, aproximadamente 5% das tecnologias pleiteadas não eram registradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o que denota o caráter emergente dessas tecnologias.(15) Achados semelhantes foram encontrados em um estudo realizado no estado do Rio Grande do Norte que mostrou predominância de solicitações relacionadas a agentes antineoplásicos e imunomoduladores.(16) Aproximadamente 13% das demandas judiciais no estado do Rio Grande do Norte envolviam pelo menos um medicamento off label.(17) Além disso, uma revisão sistemática de estudos descritivos avaliando demandas judiciais no Brasil mostrou que o percentual de solicitação de tecnologias terapêuticas potencialmente substituíveis por tecnologias disponíveis no SUS variou de 41,7% a 80,0%.(18)
O presente estudo identificou um total de 1.462 casos de judicialização relacionados à AOS, sendo 17,6% e 82,4% relacionados ao diagnóstico e tratamento dessa condição, respectivamente. Dados do Conselho Nacional de Justiça(19) revelaram que o percentual de demandas judiciais solicitando acesso ao diagnóstico de qualquer condição foi de 55,6%, e nossos resultados mostraram que 17,6% eram referentes apenas ao diagnóstico de AOS. Com relação às demandas judiciais referentes a tratamento, o Conselho Nacional de Justiça relatou um percentual total de 33,1%, enquanto encontramos um percentual muito maior (82,9%) considerando apenas o tratamento da AOS. Essa diferença pode indicar que é mais difícil ter acesso ao tratamento da AOS do que ao tratamento de outras condições. Nesse sentido, a judicialização como forma de acesso ao diagnóstico e tratamento da AOS difere em relação às demandas predominantes na cena nacional. O uso de CPAP é considerado a primeira linha de tratamento para casos moderados a graves de AOS. O uso de aparelhos intraorais como alternativa de tratamento para a AOS, geralmente efetivo para casos mais leves,(20) também não é coberto pelo SUS, o que significa que as únicas alternativas de tratamento oferecidas são os procedimentos cirúrgicos das vias aéreas.
A judicialização nesse cenário pode, portanto, ser explicada pela inexistência de um fluxo de atendimento para esses pacientes, pela alta prevalência da doença e pela escassez de recursos alocados, como leitos hospitalares para polissonografia, que é necessária para o diagnóstico. A polissonografia é um procedimento de prestação obrigatória pelo SUS, seja em ambiente hospitalar ou ambulatorial. De acordo com o SIGTAP, o custo da polissonografia em ambulatório ou em hospital era de R$ 125,00 e R$ 170,00, respectivamente, em 2020.(21) Considerando que se trata de um procedimento especializado que leva muito tempo e necessita de supervisão técnica contínua, o valor monetário apresentado no SIGTAP é inferior ao custo real do exame, o que representa uma barreira para a abertura e manutenção de laboratórios do sono credenciados pelo SUS.
A mediana dos gastos incorridos nas demandas judiciais referentes ao diagnóstico da AOS no SUS foi de R$ 1.000 no período estudado. De acordo com o SIGTAP, o custo para a realização de uma polissonografia em ambiente hospitalar era de R$ 170,00, ou seja, cinco usuários do sistema público de saúde poderiam ter sido submetidos a uma polissonografia a esse custo, o que demonstra os efeitos nocivos da judicialização sobre a eficiência e sustentabilidade do SUS.
Embora não exista um protocolo oficial ou diretriz nacional do Ministério da Saúde para definir o fluxo de atendimento para pacientes com AOS, a Conitec recomenda uma despesa de R$ 3.000 para a aquisição de um dispositivo de CPAP. O montante médio incorrido nas demandas judiciais envolvendo o sistema público de saúde analisadas foi de R$ 3.652, representando um excedente de 21,7% do valor recomendado pela Conitec. Essas discrepâncias podem ser justificadas pela falta de implementação de processos licitatórios para a aquisição de equipamentos e pela perda de oportunidades de negociação de preços para compras de grandes volumes.
O impacto negativo na eficiência do sistema de saúde também ocorre na perspectiva dos sistemas privados de saúde. A polissonografia faz parte de um conjunto de procedimentos obrigatórios. O valor de referência a ser pago depende de negociações entre cada prestador de serviço e a fonte pagadora. A tabela da Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM) fornece o valor de referência a ser utilizado para negociações iniciais. A CBHPM de 2016 projetada para 2018 estipulou que a polissonografia tinha valor inicial de negociação de R$ 797,00.(22) Dividindo-se a mediana das despesas incorridas com demandas judiciais na esfera privada referentes ao diagnóstico da AOS (R$ 11.774) por esse valor inicial, observa-se que 14 usuários da saúde privada poderiam ter sido atendidos pelo valor proposto pela tabela da CBHPM.
Ao longo do período analisado, houve redução do número absoluto de demandas judiciais entre 2017 e 2019. Esse fato pode ser explicado pela expansão das políticas locais de acesso ao diagnóstico e tratamento da AOS em algumas localidades que instauraram processos administrativos para o tratamento da AOS com CPAP. Alternativamente, pode refletir a presença de barreiras no atendimento ao paciente, como a falta de diagnóstico e a reduzida oferta de serviços especializados. No entanto, esses argumentos são especulativos, uma vez que não há uma revisão de literatura organizada que os comprove. As diretrizes públicas nacionais já provaram ser efetivas na redução da judicialização. Em 1999, a infecção pelo HIV foi um caso bem estabelecido de resposta do governo para a redução da judicialização e a abordagem das necessidades de saúde. Entre 1991 e 1998, 90% dos processos judiciais eram referentes à infecção pelo HIV. Em 1999, com a criação de um programa nacional de saúde pública para combater a doença, essas demandas judiciais diminuíram para 16,7%.(23) Outras possibilidades são as barreiras existentes durante a jornada do paciente com AOS, como a dificuldade de encaminhamento para um especialista e a baixa disponibilidade de polissonografia. De acordo com a legislação brasileira, o diagnóstico e o tratamento da AOS podem ser realizados por qualquer médico. Na prática clínica, no entanto, médicos certificados em medicina do sono são mais propensos a diagnosticar e tratar pacientes com AOS.
A metodologia utilizada para identificar as demandas judiciais é um ponto forte do presente estudo. A fim de retratar o cenário nacional da judicialização referente ao atendimento de pacientes com AOS, foi realizada uma pesquisa nos bancos de dados eletrônicos de 21 Tribunais de Justiça brasileiros, de 4 Tribunais Superiores de Justiça ou Tribunais Regionais Federais e do Supremo Tribunal Federal, utilizando descritores para identificar demandas judiciais referentes ao tema. O período analisado compreendeu os últimos 5 anos. Foi realizada a projeção das despesas totais, com imputação da mediana para as demandas judiciais que não relataram despesas incorridas, bem como análises de sensibilidade determinísticas do melhor e pior cenários, imputando os valores do primeiro e terceiro quartis, respectivamente. Esse procedimento permitiu uma estimativa mais completa das despesas totais incorridas, além de considerar as incertezas em relação aos montantes atribuídos. Vale destacar que foi utilizada a mediana e que o uso da média teria levado a estimativas de gastos mais expressivas.
Apesar da metodologia criteriosa adotada, este estudo apresenta limitações. Não é possível descartar a possibilidade de que existam processos judiciais nos quais foram utilizados termos não convencionais descrevendo as tecnologias solicitadas e que, por isso, podem não ter sido identificados, levando a uma subestimação do universo total de processos judiciais referentes à AOS. Além disso, a identificação de especialistas em medicina do sono entre os médicos prescritores foi realizada na época da análise, e não na época da execução das demandas judiciais, o que pode ter levado a uma superestimação do percentual de casos originados por esses médicos. Da mesma forma, a identificação dos serviços de saúde onde o procedimento de polissonografia estava disponível foi realizada na época da análise.
Embora seja de conhecimento público que existem municípios que possuem um processo administrativo organizado, com centros de sono públicos para oferecer diagnósticos e tratamentos, não existem dados públicos sistematizados que permitam avaliar e comparar esses municípios. O presente estudo oferece uma possibilidade de compreensão do volume de processos judiciais referentes ao acesso ao diagnóstico e tratamento da AOS no Brasil. Recomenda-se, portanto, a realização de estudos nessa área.
Concluindo, o grande volume de processos judiciais referentes ao atendimento de pacientes com AOS no Brasil pode ser devido à falta de uma política pública nacional que coordene e garanta o fluxo de atendimento de uma condição prevalente e tratável associada a morbidade e mortalidade.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES DVP: conceituação; metodologia; análise formal; redação do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito. BF: conceituação; curadoria de dados; aquisição de financiamento; administração do projeto; metodologia; análise formal; redação do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito. CA: aquisição de financiamento; revisão e edição do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito. AG, CP e PV: investigação; curadoria de dados; recursos; aprovação da versão final do manuscrito. ALE e LFD: conceituação; metodologia; redação e revisão do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito.
CONFLITOS DE INTERESSE DVP, ALE e LFD: atividades de consultoria para ResMed Brasil neste e em outros projetos. BF: funcionário de ResMed Brasil durante a condução do estudo. CA: funcionário de ResMed Brasil. AG, CP e PV: atividades de consultoria para ResMed Brasil neste projeto.
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