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Editorial

Melhor educação e vigilância para abordar a onda dos cigarros eletrônicos como uma pandemia

Better education and surveillance to approach the e-cigarette surge as a pandemic

Irma de Godoy1

DOI: 10.36416/1806-3756/e20230026

 
“Estamos no negócio de vender nicotina, uma droga que causa dependência e efetivamente libera os mecanismos de estresse”.
 
Alberto Addison Yeman, da indústria de cigarros Brown & Williamson. Documento 1802, do arquivo secreto revelado em 1963 – EUA(1)

 
O professor José Rosemberg, um dos melhores exemplos de dignidade humana, ética e solidariedade, lutando contra doenças por muitos anos e defendendo o direito da população brasileira a uma vida saudável, escreveu o livro “Pandemia do Tabagismo: enfoques históricos e atuais” em 2002.(1) Nós o citamos: “Nenhum hábito social ou droga expandiu-se com a velocidade do tabaco. Foi uma verdadeira febre que tomou conta de todos”.(1) Hoje em dia, com a onda dos cigarros eletrônicos, estamos vendo um remake dessa era sombria.
 
Os cigarros eletrônicos são o produto de tabaco mais usado entre os adolescentes dos Estados Unidos desde 2014. Em 2022, mais de 2,5 milhões de jovens, incluindo 14,1% dos estudantes americanos do ensino médio, eram usuários atuais de cigarros eletrônicos.(2) Os achados da Global Youth Tobacco Survey em 17 locais da Europa avaliando estudantes de 11 a 17 anos mostraram que a prevalência de uso de vape dobrou em alguns países entre 2014-2018, com taxas entre 7,6% e 18,5%.(3) Um estudo em 73 países mostrou que a prevalência de uso de narguilé (pelo menos um dia nos últimos 30 dias) entre adolescentes de 12 a 16 anos era de 6,9%, e taxas superiores a 10% foram encontradas na Europa e no Mediterrâneo Oriental.(4)
 
Para conseguir uma das mais importantes quedas nas taxas de tabagismo do mundo, as instituições brasileiras tomaram atitudes enérgicas, e a prevalência de tabagismo caiu de 34,8% em 1989 para 9,1% em 2021.(5) De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2019,(6) a proporção total de fumantes entre os estudantes de 13 a 17 anos era de 6,8%, sendo maior entre os meninos (7,1%) em comparação com as meninas (6,5%). Ao se comparar os achados com os dados da mesma pesquisa em 2015,(7) pode-se observar um leve aumento na proporção total de fumantes na faixa etária de 13 a 17 anos (de 6,6% em 2015 para 6,8% em 2019) em virtude do aumento na proporção de fumantes entre as meninas (de 6,0% em 2015 para 6,5% em 2019), embora a prevalência de fumantes entre os meninos tenha permanecido estável no mesmo período (7,1% em 2015 e 2019).(6,7)
 
Com relação aos dispositivos eletrônicos para fumar, a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária(8) proíbe a venda, importação e propaganda de quaisquer dispositivos para fumar, conhecidos como cigarros eletrônicos. No entanto, dados da Pesquisa Nacional de Saúde identificaram uma prevalência de 0,64% de usuários de cigarros eletrônicos, sendo que 70% estavam na faixa etária de 15 a 24 anos e quase 90% não fumavam cigarros.(9) A prevalência de uso de narguilé foi estimada em 0,47%, um aumento de 300% entre 2013 e 2019, e aproximadamente 80% dos usuários estavam na faixa etária de 15 a 24 anos.(9)
 
O verdadeiro problema não é apenas a experimentação de cigarros eletrônicos, mas seu uso contínuo, o qual pode levar a um vício difícil de superar. Além disso, as características dos usuários de cigarros eletrônicos e narguilé e a propaganda da indústria do tabaco revelam que o principal objetivo não é a cessação do tabagismo, mas sim fazer com que os usuários se viciem em nicotina e se tornem dependentes.
 
Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, dois importantes artigos analisam a experimentação e uso de cigarros eletrônicos e narguilé entre maiores de 18 anos e estudantes de medicina. Menezes et al.,(10) como parte de um estudo transversal de âmbito nacional por inquérito telefônico, realizado em 2022, incluíram 1.800 indivíduos de cada uma das cinco regiões geográficas brasileiras. Foram encontradas prevalências idênticas de uso de cigarros eletrônicos e narguilé na vida (7,3%; IC95%: 6,0-8,9), as quais foram maiores entre os homens, entre aqueles na faixa etária de 18 a 24 anos e entre aqueles com maior escolaridade. Martins et al.(11) avaliaram 711 estudantes de medicina em um estudo transversal, multicêntrico, online, nas cinco regiões geográficas brasileiras.
 
A experimentação e uso atual de narguilé foram de 42,6% e 11,5%, respectivamente, enquanto os de cigarro eletrônico foram de 13,2% e 2,3%, respectivamente. Foi encontrado maior risco de experimentação entre aqueles com maior renda e aqueles com fumantes em seu grupo social. A experimentação de narguilé e cigarros eletrônicos foi associada a risco elevado de fumar cigarros. O uso de cigarros eletrônicos para parar de fumar foi mais associado ao uso duplo do que à cessação do tabagismo. Surpreendentemente, mesmo entre os estudantes de medicina, o conhecimento sobre as consequências do consumo de produtos de nicotina para a saúde não impediu a experimentação.
 
Esses estudos revelam e reforçam alguns achados importantes. Em primeiro lugar, mesmo com a proibição da venda, importação e propaganda desses dispositivos, a prevalência de uso está aumentando, principalmente entre os grupos com boa escolaridade e maior renda. Além disso, os não fumantes representam a maioria dos usuários, e as propagandas da indústria do tabaco têm visado a esse público. Essas descobertas aumentam o desafio de desenvolver estratégias para evitar que esse grupo de consumidores seja fisgado pelo apelo desses dispositivos e pelas estratégias da indústria.
 
Embora os efeitos em longo prazo da inalação de aromatizantes químicos líquidos e nicotina sobre a saúde necessitem de mais investigações, há evidências claras de que o uso de qualquer produto de nicotina por jovens não é seguro. Portanto, são necessárias medidas agressivas para proteger nossas crianças e jovens desses produtos, os quais possuem grande apelo, em parte por seu design inovador, seu sabor e aroma atraentes e sua grande capacidade de liberar nicotina, induzindo à dependência de nicotina e sendo uma porta de entrada para o início do tabagismo.
 
A atual regulamentação brasileira proíbe a comercialização de cigarros eletrônicos e inclui a adoção de medidas adicionais para coibir o comércio ilegal desses dispositivos, como o aumento das ações de fiscalização e a realização de campanhas educativas. No entanto, manter a vigilância sobre a proibição da venda é uma tarefa difícil, ainda mais por causa do comércio eletrônico, e as pessoas podem obter seus cigarros eletrônicos em viagens internacionais bem como de amigos ou familiares.
 
Para obtermos sucesso, devemos trabalhar juntos, alinhando e coordenando esforços entre agências governamentais em nível nacional, estadual e local, bem como entre entidades médicas, instituições educacionais e a sociedade.(12) Pais, professores, profissionais de saúde e comunidades devem tomar atitudes como: aprender sobre as diferentes formas e tipos de cigarros eletrônicos e os riscos de todas as formas de uso desses cigarros; desenvolver, implementar e fazer cumprir políticas antitabaco; envolver as pessoas em discussões sobre os perigos do uso de cigarros eletrônicos; perguntar sobre cigarros eletrônicos; e (profissional de saúde) ao examinar pacientes quanto ao uso de qualquer produto do tabaco, educá-los, especialmente se forem jovens, sobre os riscos de todas as formas de uso de produtos do tabaco, incluindo cigarros eletrônicos, e encorajá-los a parar.
 
Finalizo este editorial com a seguinte citação:
 
“Eu, Cirurgião-Geral do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, Vice-Almirante Jerome Adams, estou enfatizando a importância de protegermos nossos filhos de uma vida inteira de dependência de nicotina e riscos de saúde associados, abordando imediatamente a epidemia de uso de cigarros eletrônicos pelos jovens. O recente aumento do uso de cigarros eletrônicos entre os jovens, alimentado por novos tipos de cigarros eletrônicos que entraram recentemente no mercado, é motivo de grande preocupação. Devemos agir agora para proteger a saúde dos jovens de nossa nação. CONHEÇA OS RISCOS. TOME UMA ATITUDE. PROTEJA NOSSAS CRIANÇAS”.(12)
 
REFERÊNCIAS
 
1.            Rosemberg J. Pandemia do Tabagismo: enfoques históricos e atuais. São Paulo: Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Centro de Vigilância Epidemiológica.; 2002. 184 p.
2.            Cooper M, Park-Lee E, Ren C, Cornelius M, Jamal A, Cullen KA. Notes from the Field: E-cigarette Use Among Middle and High School Students - United States, 2022. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2022;71(40):1283-1285. https://dx.doi.org/10.15585/mmwr.mm7140a3
3.            Tarasenko Y, Ciobanu A, Fayokun R, Lebedeva E, Commar A, Mauer-Stender K. Electronic cigarette use among adolescents in 17 European study sites: findings from the Global Youth Tobacco Survey. Eur J Public Health. 2022;32(1):126-132. https://dx.doi.org/10.1093/eurpub/ckab180
4.            Ma C, Yang H, Zhao M, Magnussen CG, Xi B. Prevalence of waterpipe smoking and its associated factors among adolescents aged 12-16 years in 73 countries/territories. Front Public Health. 2022;10:1052519. https://dx.doi.org/10.3389/fpubh.2022.1052519
5.            Brasil. Ministry of Health. National Cancer Institute. Observatory of the National Policy on Tobacco Control [updated 2022 Mar 10; cited 2023 Jan 19]. Data and smoking numbers. Available from: https://www.inca.gov.br/en/observatory-of-the-national-policy-on-tobacco-control/data-and-smoking-numbers
6.            Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar: 2019. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.
7.            Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar: 2015. Rio de Janeiro: IBGE; 2016.
8.            Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC nº 328. Diário Oficial da União Nº 166, 45 de 31 de agosto de 2009. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=31/08/2009&jornal=1&pagina=45&totalArquivos=120
9.            Bertoni N, Cavalcante TM, Souza MC, Szklo AS. Prevalence of electronic nicotine delivery systems and waterpipe use in Brazil: where are we going?. Rev Bras Epidemiol. 2021;24(suppl 2):e210007. https://dx.doi.org/10.1590/1980-549720210007.supl.2
10.          Menezes AMB, Wehrmeister FC, Sardinha LMV, de Paula PCB, Costa TA, Crespo PA, et al. Use of electronic cigarettes and hookah in Brazil: a new and emerging landscape. The Covitel study, 2022. J Bras Pneumol. 2023;49(1):e20220290. https://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20220290
11.          Martins SR, Araújo AJ, Wehrmeister FC, Freitas BM, Basso RG, Santana ANC, et al. Prevalence and associated factors of experimentation with and current use of water pipes and electronic cigarettes among medical students: a multicentric study in Brazil. J Bras Pneumol. 2023;49(1):e20210467. https://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20210467
12.          Centers for Disease Control and Prevention (CDC) [homepage on the Internet]. Atlanta: CDC; c2020 [updated 2018 Dec; cited 2023 Jan 19]. Surgeon General’s Advi-sory on E-cigarette Use Among Youth. Available from: https://www.cdc.gov/tobacco/basic_information/e-cigarettes/surgeon-general-advisory/index.html

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