CONTEXTO Os testes de função pulmonar (TFP) são altamente sensíveis a distúrbios na unidade cardiopulmonar. Reconhecer os efeitos da doença cardíaca nos TFP é fundamental para a interpretação adequada dos testes, uma tarefa particularmente desafiadora na presença de distúrbios respiratórios coexistentes.
VISÃO GERAL Paciente de 72 anos, ex-fumante, realizou TFP por dispneia desproporcional após otimização do tratamento para insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFEr). O VR e a capacidade residual funcional (CRF) estavam acentuadamente aumentados (~160%), apesar de apenas uma leve e proporcional redução do VEF1 e da CVF pós-broncodilatador (BD) com CPT preservada. Diante da presença de aprisionamento aéreo e do histórico de tabagismo, iniciou-se o uso de BD de longa duração com rápida melhora da dispneia (caso 1). Paciente de 81 anos, ex-fumante, com internação hospitalar por ICFEr descompensada, apresentou obstrução “fixa” com DLCO baixa uma semana após a alta. Recusou o tratamento com BD para potencial DPOC. Dois meses depois, todos os TFP estavam dentro da normalidade (caso 2).
A interpretação clínica dos TFP na doença cardíaca associada à congestão pulmonar e/ou baixo débito cardíaco está repleta de armadilhas.(1,2) Na ICFEr crônica, reduções dos volumes pulmonares (baixa complacência pulmonar, preenchimento alveolar, cardiomegalia) e, em alguns pacientes, fraqueza muscular inspiratória podem causar restrição. Se suficientemente graves, isso pode “normalizar” a espirometria e contrabalançar qualquer hiperinsuflação na DPOC coexistente.(3) Aprisionamento aéreo não é comumente observado na ICFEr estável e, no contexto clínico adequado, pode sinalizar doença subjacente das vias aéreas (caso 1; Figura 1A). Ventilação exagerada(4) com oferta inadequada de O2 aos músculos no teste de esforço cardiopulmonar pode sugerir que a ICFEr contribui para a dispneia aos esforços na DPOC. Obstrução evidente com redução dos fluxos expiratórios intermediários causada pelo espessamento peribronquiolar, inchaço da mucosa e reflexos vagais podem ocorrer na ICFEr descompensada aguda (“asma cardíaca”; Figura 1B). Essas alterações podem levar semanas para se resolver (caso 2), frequentemente acompanhadas de hiperresponsividade das vias aéreas.(5) Embora um maior volume de sangue capilar possa aumentar a condutância “vascular” para a transferência gasosa, isso é suplantado por aumentos na resistência da “membrana”. Assim, reduções leves a moderadas na DLCO — que pioram com a progressão da ICFEr — podem tornar difícil determinar a contribuição de qualquer doença pulmonar subjacente (por exemplo, DPOC, doença pulmonar intersticial) para DLCO baixa (Figura 1B).
Diferentemente do que acontece na ICFEr, um leve decréscimo na VEF1/CV(F) e aumentos do VR são frequentemente observados em pacientes com doença valvar mitral moderada a grave estável, provavelmente em virtude dos vasos congestionados nas paredes alveolares que impedem a desinsuflação completa. A doença cardíaca congênita associada a shunt da esquerda (E) para a direita (D) e aumento do volume sanguíneo capilar pode aumentar a DLCO e o coeficiente de transferência de monóxido de carbono (KCO). Hipoxemia leve e aumento do gradiente alvéolo-arterial de oxigênio podem ocorrer por desequilíbrio entre ventilação e perfusão. A hipoxemia grave é a marca registrada dos pacientes com shunt D-E (por exemplo, tetralogia de Fallot, síndrome de Eisenmenger), sendo a fração de shunt estimada pelo teste de inalação de O2 a 100%.(6)
MENSAGEM CLÍNICA Diante do fato de que as doenças respiratórias e cardíacas frequentemente coexistem e diante das consequências sobrepostas para a função pulmonar, o pneumologista deve reconhecer os “tons de cinza” ao interpretar os TFP nesses pacientes. Frequentemente, pouco se sabe sobre a probabilidade pré-teste da doença ou a gravidade/estabilidade da doença em pacientes com doença cardíaca conhecida. Assim, o laudo deve afirmar com cautela que os resultados dos testes devem ser analisados considerando-se o contexto clínico do indivíduo.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES Todos os autores contribuíram na conceituação, redação, revisão e edição.
CONFLITOS DE INTERESSE Nenhum declarado.
REFERÊNCIAS 1.Magnussen H, Canepa M, Zambito PE, Brusasco V, Meinertz T, Rosenkranz S. What can we learn from pulmonary function testing in heart failure?. Eur J Heart Fail. 2017;19(10):1222-1229. https://doi.org/10.1002/ejhf.946
2.Neder JA, Rocha A, Alencar MCN, Arbex F, Berton DC, Oliveira MF, et al. Current challenges in managing comorbid heart failure and COPD. Expert Rev Cardiovasc Ther. 2018;16(9):653-673. https://doi.org/10.1080/14779072.2018.1510319
3.Souza AS, Sperandio PA, Mazzuco A, Alencar MC, Arbex FF, Oliveira MF, et al. Influence of heart failure on resting lung volumes in patients with COPD. J Bras Pneumol. 2016;42(4):273-278. https://doi.org/10.1590/S1806-37562015000000290
4.Arbex FF, Alencar MC, Souza A, Mazzuco A, Sperandio PA, Rocha A, et al. Exercise Ventilation in COPD: Influence of Systolic Heart Failure. COPD. 2016;13(6):693-699. https://doi.org/10.1080/15412555.2016.1174985
5.Tanabe T, Rozycki HJ, Kanoh S, Rubin BK. Cardiac asthma: new insights into an old disease. Expert Rev Respir Med. 2012;6(6):705-714. https://doi.org/10.1586/ers.12.67
6.Neder JA, Berton DC, O’Donnell DE. Integrating measurements of pulmonary gas ex-change to answer clinically relevant questions. J Bras Pneumol. 2020;46(1):e20200019. https://doi.org/10.1590/1806-3713/e20200019