A espirometria é um exame que mede o volume e o fluxo de ar que um indivíduo consegue expirar com esforço máximo após uma inspiração completa em um sistema selado.(1) Esse sistema, denominado espirômetro, foi desenvolvido por John Hutchinson e seu colega, Charles Thackrah, em 1831; o primeiro publicou mais tarde um artigo sobre as cinco medidas da espirometria moderna.(2) Posteriormente, os espirômetros evoluíram de simples dispositivos mecânicos para sofisticados sistemas computacionais. Depois, estudos de base populacional estabeleceram valores espirométricos de referência, e a publicação de diretrizes com requisitos e padrões garantiu a confiabilidade e o controle de qualidade do exame.(1,3)
As indicações da espirometria vêm aumentando paralelamente ao refinamento de outros métodos para o diagnóstico de doenças respiratórias prevalentes como asma, DPOC e bronquiectasias e de doenças pulmonares ocupacionais, intersticiais e vasculares. A espirometria é essencial não só no monitoramento da progressão da doença e da capacidade de resposta à terapia, mas também na prática clínica e na pesquisa, melhorando a qualidade e a precisão dos cuidados de saúde.(4)
A DPOC é a terceira principal causa de morte no mundo e a quarta em países de baixa e média renda. Segundo o estudo PLATINO,(5) 87,5% dos indivíduos nunca haviam recebido o diagnóstico de DPOC e 82,3% nunca haviam recebido um tratamento farmacológico na cidade de São Paulo (SP). Esse quadro é semelhante em outros países. Dados derivados de quatro estudos epidemiológicos revelaram que apenas 26,4% dos participantes relataram já ter realizado um teste de função pulmonar e apenas 5,0% haviam recebido o diagnóstico de DPOC, resultando em uma taxa de subdiagnóstico de 81,4%.(6)
A asma causa morbidade significativa em indivíduos de todas as idades e afeta grande parte da população mundial, e, apesar das terapias modernas disponíveis, a doença permanece subdiagnosticada e não controlada, resultando em significativa morbidade e absenteísmo e em alto risco de exacerbações e de visitas à emergência e hospitalizações. Na América Latina, apenas 51% e 38% dos adultos e crianças com asma, respectivamente, já haviam realizado espirometria, e dois terços deles relataram ter realizado o exame no ano anterior.(7) Esses dados retratam a subutilização da espirometria e a alta taxa de subdiagnóstico das doenças respiratórias no Brasil e em outros países de baixa e média renda em virtude da percepção equivocada de médicos e pacientes sobre o diagnóstico e monitoramento dessas doenças e da pouca disponibilidade de espirometria na região. Para piorar a situação, a pandemia de COVID-19 levou a um aumento da procura por cuidados respiratórios e do uso de recursos de saúde, incluindo o uso da espirometria e de outros exames.(8)
Considerando a dimensão continental do Brasil e a heterogeneidade do sistema de atenção primária, o aumento do acesso à espirometria exige muito. Como isso poderia ser abordado? Uma das possibilidades seria utilizar a eletrônica para cobrir grandes áreas geográficas em todo o país. Os sistemas de telessaúde (ST) têm sido ferramentas importantes nesse contexto. O preditor mais importante para o uso de tecnologias digitais é a usabilidade dessas tecnologias, enquanto as principais barreiras são questões tecnológicas, má conectividade, analfabetismo computacional, incapacidade de realizar exames físicos, entre outras. Em geral, a disponibilidade de suporte remoto via web para unidades de atenção primária à saúde (APS) envolvendo técnicos e especialistas gera um impacto positivo na qualidade da espirometria.(9)
Na cidade de Belo Horizonte (MG), o Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais associou-se ao Ministério da Saúde para implementar o Sistema de Tele-espirometria Brasil (ST-BR) em várias unidades de APS em cidades com índice de desenvolvimento humano baixo a médio no Brasil, a fim de auxiliar os médicos das unidades de APS em sua prática cotidiana por meio de uma ferramenta confiável e de fácil acesso.(10) O projeto incluiu várias etapas: composição da equipe para seleção dos municípios, desenvolvimento de treinamento virtual e presencial sobre espirometria, aquisição de espirômetros, criação e validação de software para transmissão dos exames, seleção de pneumologistas para interpretação dos resultados, treinamento presencial dos funcionários das unidades de APS, reciclagem periódica dos técnicos e avaliação da qualidade dos exames e dos laudos. Os municípios foram selecionados com base na participação na estratégia brasileira de saúde da família, disponibilidade de prontuários eletrônicos, carga de asma e DPOC e alta mortalidade por COVID-19. Os municípios tiveram que selecionar técnicos para receber treinamento, garantir a compra de bocais e filtros para espirômetros e manter uma oferta regular de espirometrias. O ST-BR forneceu treinamento a médicos especialistas selecionados para a interpretação e emissão de laudos de espirometria e para teleconsultas assíncronas.
A implementação do ST-BR ocorreu entre janeiro de 2022 e junho de 2023. Até o envio deste manuscrito, o ST-BR já estava ativo em 147 municípios e haviam sido realizadas mais de 14.500 espirometrias. A qualidade das espirometrias foi avaliada remotamente e melhorou à medida que o número de espirometrias aumentou (atualmente, 80,62% estão na categoria A ou B).
Uma análise de custo-efetividade do uso dos ST mostrou que ele é 23% mais caro, mas 46% mais efetivo, sendo que os custos tendem a diminuir à medida que aumenta o número de exames realizados.(11) No entanto, como a qualidade dos ST pode diminuir ao longo do tempo, um controle de qualidade centralizado e um programa de reciclagem são obrigatórios.(12)
Em conclusão, existe uma grande demanda por testes de função pulmonar nas unidades de APS em todo o mundo, e isso se agravou após a eclosão da pandemia de COVID-19 no Brasil. O ST-BR mostrou que é possível aumentar em larga escala a oferta de espirometria no país por meio de um sistema remoto estruturado, ágil e bem monitorado, utilizando recursos eletrônicos adequados.
APOIO FINANCEIRO
Antônio Luiz Pinho Ribeiro recebe apoio financeiro parcial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; Processos n. 310790/2021-2 e n. 465518/2014-1) e da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG; Processos PPM-00428-17 e RED-00081-16).
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
RAC contribuiu para a concepção. RAC, EVM, CFR e ALPR contribuíram igualmente para a redação e revisão da versão final do manuscrito. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
CONFLITOS DE INTERESSE
Nenhum declarado.
REFERÊNCIAS
1.Graham BL, Steenbruggen I, Miller MR, Barjaktarevic IZ, Cooper BG, Hall GL, et al. Standardization of Spirometry 2019 Update. An Official American Thoracic Society and European Respiratory Society Technical Statement. Am J Respir Crit Care Med. 2019;200(8):e70-e88. https://doi.org/10.1164/rccm.201908-1590ST
2.Hutchinson J. On the capacity of the lungs, and on the respiratory functions, with a view of establishing a precise and easy method of detecting disease by the spirometer. Med Chir Trans. 1846;29:137-252. https://doi.org/10.1177/095952874602900113
3.Pereira CAC, Soares MR, Gimenez A. The importance of appropriate reference values in patients suspected of having obstructive lung disease. J Bras Pneumol. 2019;45(6):e20190299. https://doi.org/10.1590/1806-3713/e20190299
4.Kouri A, Dandurand RJ, Usmani OS, Chow CW. Exploring the 175-year history of spirometry and the vital lessons it can teach us today. Eur Respir Rev. 2021;30(162):210081. https://doi.org/10.1183/16000617.0081-2021
5.Nascimento OA, Camelier A, Rosa FW, Menezes AM, Pérez-Padilla R, Jardim JR, et al. Chronic obstructive pulmonary disease is underdiagnosed and undertreated in São Paulo (Brazil): results of the PLATINO study. Braz J Med Biol Res. 2007;40(7):887-895. https://doi.org/10.1590/S0100-879X2006005000133
6.Lamprecht B, Soriano JB, Studnicka M, Kaiser B, Vanfleteren LE, Gnatiuc L, et al. Determinants of underdiagnosis of COPD in national and international surveys. Chest. 2015;148(4):971-985. https://doi.org/10.1378/chest.14-2535
7.Neffen H, Fritscher C, Schacht FC, Levy G, Chiarella P, Soriano JB, et al. Asthma control in Latin America: The Asthma Insights and Reality in Latin America (AIRLA) survey. Rev Panam Salud Publica. 2005;17(3):1917. https://doi.org/10.1590/S1020-49892005000300007
8.Burgos Rincón F, Martínez Llorens J, Cordovilla Pérez R. Impact of the COVID-19 Pandemic on Lung Function Laboratories: Considerations for “Today” and the “Day After”. Arch Bronconeumol (Engl Ed). 2020;56(10):611-612. https://doi.org/10.1016/j.arbr.2020.07.009
9.Burgos F, Disdier C, de Santamaria EL, Galdiz B, Roger N, Rivera ML, et al; Telemedicine enhances quality of forced spirometry in primary care. Eur Respir J. 2012;39(6):1313-1318. https://doi.org/10.1183/09031936.00168010
10.Alkmim MB, Figueira RM, Marcolino MS, Cardoso CS, Pena de Abreu M, Cunha LR, et al. Improving patient access to specialized health care: the Telehealth Network of Minas Gerais, Brazil. Bull World Health Organ. 2012;90(5):373-378. https://doi.org/10.2471/BLT.11.099408
11.Marina N, Bayón JC, López de Santa María E, Gutiérrez A, Inchausti M, Bustamante V, et al. Economic Assessment and Budgetary Impact of a Telemedicine Procedure and Spirometry Quality Control in the Primary Care Setting. Arch Bronconeumol. 2016;52(1):24-28. https://doi.org/10.1016/j.arbr.2015.11.002
12.Pérez-Padilla R, Vázquez-García JC, Márquez MN, Menezes AM; PLATINO Group. Spi-rometry quality-control strategies in a multinational study of the prevalence of chro-nic obstructive pulmonary disease. Respir Care. 2008;53(8):1019-1026. PMID: 18655739.