Até novembro de 2023, Organização Mundial da Saúde contabilizou acima de 770 milhões de casos confirmados de COVID-19.(1) Considerando-se que a TC do tórax apresentou papel de relevância no manejo desses pacientes durante a pandemia, na melhor das hipóteses podemos supor que dezenas de milhões de TC foram realizadas nesse período. Mesmo que por motivos não relacionados, sob a perspectiva da imagem oncológica, provavelmente foi realizado o maior rastreamento oportunista de neoplasias pulmonares de que se tem notícias.
Neste sentido, o estudo de Zanardo et al.(2) traz luz a uma relevante questão que envolve o diagnóstico diferencial dos nódulos pulmonares subssólidos (NSS) e o conhecimento atual sobre a morfologia/evolução tomográfica dos adenocarcinomas. Mesmo que sem significância estatística, foi demonstrada uma tendência de redução no diagnóstico de NSS na amostra colhida durante o período da pandemia de COVID-19 ao serem interpretadas por um radiologista torácico. O fato se explica pela semelhança morfológica entre lesões persistentes que se apresentam como NSS e aquelas transitórias relacionadas ao SARS-CoV-2 à TC, destacando-se a possibilidade de alterações neoplásicas, em especial lesões no espectro dos adenocarcinomas. Em se imaginando um cenário de vida real durante a pandemia, alguns fatores podem ter potencialmente complicado o possível subdiagnóstico de NSS persistentes. Primeiro, durante aquele período os radiologistas foram expostos a um número desproporcional de TC de tórax para avaliação, com exigências de rápidas respostas nos relatórios, o que certamente reduziu o tempo de interpretação e pode ter influenciado o detalhamento de algumas dessas lesões.(3) Segundo, com a demanda aumentada, radiologistas com níveis variados de experiência em imagem torácica (e em consequência familiaridade com interpretação de NSS) foram convocados para a interpretação desses exames.
Importantes estudos sobre o diagnóstico morfológico dos adenocarcinomas pulmonares foram publicados nos anos da década de 1990, dentre eles destacando-se o de Noguchi et al.,(4) correlacionando o aspecto morfológico (histopatológico) e prognóstico dos pequenos adenocarcinomas pulmonares. Dos respectivos estudos derivou-se o conhecimento da morfologia e evolução desses tumores na TC, e os NSS persistentes (semissólidos ou puramente em vidro fosco) passaram a ser reconhecidos pelo seu potencial neoplásico.(5) Vale enfatizar que o diagnóstico diferencial de NSS é amplo nas lesões transitórias, incluindo alterações inflamatórias e infecciosas (inclusive COVID-19) e hemorragia focal, enquanto nas lesões persistentes abrange fibrose intersticial, pneumonia em organização, endometriose e neoplasias (incluindo alterações no espectro de adenocarcinomas, distúrbios linfoproliferativos e, menos comumente, implantes neoplásicos secundários).(6)
Embora a semiologia morfológica dos NSS na TC seja limitada na diferenciação entre lesões benignas e neoplasias (em especial adenocarcinomas), devem ser valorizadas para a última etiologia aquelas lesões persistentes e apresentando achados específicos como espiculações, lucências internas, convergência vascular, interface grosseira mas bem definida com o parênquima adjacente, e retração pleural.(7) Dentro dos protocolos atuais de manejo diagnóstico dos NSS pela sociedade Fleischner(8) são combinados elementos morfológicos (lesões puramente em vidro fosco ou semissólidas), tamanho e multiplicidade para sugestões de seguimento, sendo frequentemente acompanhadas por longos períodos de tempo para a avaliação de seu comportamento.
A população feminina merece atenção especial, e no estudo de Zanardo et al.(2) tiveram mais NSS detectados independente do status para COVID-19. Tem sido demonstrada uma tendência para aumento na frequência de neoplasias pulmonares na população feminina em vários países, inclusive com expectativas de que a mortalidade por neoplasias pulmonares ultrapasse a mortalidade por neoplasias mamárias.(9) Ademais, alguns estudos de rastreamento têm mostrado maior benefício de redução de mortalidade por neoplasias pulmonares nas mulheres, com destaque para um estudo no qual a redução da mortalidade específica por neoplasias pulmonares foi de 24% em homens e 33% em mulheres.(9,10)
Voltamos assim ao ponto dos incontáveis estudos tomográficos do tórax realizados em todo o mundo durante o desafiador período da pandemia por COVID-19. Precisamos refletir que, dada a semelhança morfológica entre as alterações pulmonares determinadas pelo SARS-CoV-2 e lesões no espectro dos adenocarcinomas, algumas das últimas podem não ter sido prontamente reconhecidas. Prospectivamente, vale reforçar à comunidade radiológica a importância da análise comparativa criteriosa das TC de tórax atuais com eventuais exames anteriores durante aquele período para diagnóstico retrospectivo e manejo adequado dessas lesões.
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
Os autores contribuíram igualmente para este editorial.
CONFLITOS DE INTERESSE
Nenhum declarado.
REFERÊNCIAS
1.World Health Organization [homepage on the internet]. Geneva: WHO; c2023 [cited 2023 Dec 2]. Coronavirus (COVID-19) Dashboard. Available from: https://covid19.who.int/
2.Zanardo AP, Brentano VB, Grando RD, Rambo RR, Hertz FT, Anflor Júnior LC, et al. Detection of subsolid nodules on chest CT scans during the COVID-19 pandemic. J Bras Pneumol. 2023;49(6):20230300.
3.Alaref A, Elnayal A, Kulkarni A, Alabousi A, Van Der Pol C. Burnout Exacerbation due to COVID-19 Pandemic. Can Assoc Radiol J. 2022;73(1):272. https://doi.org/10.1177/08465371211022291
4.Noguchi M, Morikawa A, Kawasaki M, Matsuno Y, Yamada T, Hirohashi S, et al. Small adenocarcinoma of the lung. Histologic characteristics and prognosis. Cancer. 1995;75(12):2844-2852. https://doi.org/10.1002/1097-0142(19950615)75:12<2844::AID-CNCR2820751209>3.0.CO;2-
5.Travis WD, Brambilla E, Noguchi M, Nicholson AG, Geisinger KR, Yatabe Y, et al. International association for the study of lung cancer/american thoracic society/european respiratory society international multidisciplinary classification of lung adenocarcinoma. J Thorac Oncol. 2011;6(2):244-285. https://doi.org/10.1097/JTO.0b013e318206a221
6.Carter BW, Walker CM, Hobbs SB, Chung JH. A Subsolid Pulmonary Lesion. Diagnostic Considerations and Management Options. Ann Am Thorac Soc. 2016;13(7):1180-1182. https://doi.org/10.1513/AnnalsATS.201601-086CC
7.Fan L, Liu SY, Li QC, Yu H, Xiao XS. Multidetector CT features of pulmonary focal ground-glass opacity: differences between benign and malignant. Br J Radiol. 2012;85(1015):897-904. https://doi.org/10.1259/bjr/33150223
8.MacMahon H, Naidich DP, Goo JM, Lee KS, Leung ANC, Mayo JR, et al. Guidelines for Management of Incidental Pulmonary Nodules Detected on CT Images: From the Fleischner Society 2017. Radiology. 2017;284(1):228-243. https://doi.org/10.1148/radiol.2017161659
9.Revel MP, Chassagnon G. Ten reasons to screen women at risk of lung cancer [published correction appears in Insights Imaging. 2023 Nov 22;14(1):198]. Insights Imaging. 2023;14(1):176. https://doi.org/10.1186/s13244-023-01512-8
10.de Koning HJ, van der Aalst CM, de Jong PA, Scholten ET, Nackaerts K, Heuvelmans MA, et al. Reduced Lung-Cancer Mortality with Volume CT Screening in a Randomized Trial. N Engl J Med. 2020;382(6):503-513. https://doi.org/10.1056/NEJMoa1911793