ABSTRACT
To describe some aspects of tuberculosis in a low-income community (the Complexo de Manguinhos, in Rio de Janeiro, Brazil), a retrospective study was carried out. Of the 290 cases reported in the 2000-2002 period, 75.8% were new cases. The annual incidence rates were 157/100,000 (2000), 205/100,000 (2001), and 145/100,000 (2002). Although there was a tendency toward a decrease in the number of cases over the period studied, the difference was not significant, suggesting that tuberculosis continues to be endemic in the area. Therefore, despite the existence of local public health care services, more efficient strategies should be implemented in order to increase the effectiveness of tuberculosis control programs in the area.
Keywords:
Tuberculosis/epidemiology; Poverty areas; Mycobacterium tuberculosis.
RESUMO
Para descrever alguns aspectos da tuberculose em favelas, foi realizado um estudo retrospectivo no Complexo de Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ) Brasil. Em um total de 290 casos notificados entre 2000 e 2002, 75,8% eram casos novos. A taxa de incidência foi de 157, 205 e 145/100.000, respectivamente. Embora tenha sido observada tendência de diminuição dos números de casos no período de estudo, esta não foi significante, sugerindo manutenção da endemia. Portanto, embora exista um serviço de saúde no local, estratégias mais eficientes devem ser implantadas para auxiliar o Programa de Controle da tuberculose.
Palavras-chave:
Tuberculose/epidemiologia; Áreas de pobreza; Mycobacterium tuberculosis.
A tuberculose (TB) é tão antiga quanto a humanidade. Segundo estimativas recentes, um terço da população mundial está infectada com Mycobacterium tuberculosis.(1,2) Embora o surgimento da doença em países desenvolvidos está associado ao surgimento do vírus da imunodeficiência humana, a incidência da TB tem declinado recentemente. Atualmente, a TB é uma doença primariamente relacionada à pobreza, como evidenciado pelo fato de que 85% dos casos estarem concentrados em países em desenvolvimento.(3,4)
No Brasil, a incidência anual estimada de TB pulmonar confirmada por baciloscopia é de 62/100.000,(5) sendo que a maioria dos casos ocorre na cidade do Rio de Janeiro, onde a incidência anual estimada é de 99/100.000.(6) Entretanto, estes dados podem não refletir a verdadeira dimensão do problema, visto que as taxas de incidência são tipicamente subestimadas em áreas de pobreza. Os casos detectados em áreas de favelas são notificados aos serviços de saúde pública, que também atendem a indivíduos de áreas ocupadas pela classe de trabalhadores como parte da população das favelas.(7) O presente estudo tem como objetivo descrever os aspectos epidemiológicos da TB nos pacientes residentes no Complexo de Manguinhos com o intuito de apresentar dados retrospectivos sobre a TB nesta comunidade no período entre 2000 e 2002.
A cidade do Rio de Janeiro está dividida em cinco zonas de serviços de saúde (ZS) e o Complexo de Manguinhos corresponde à ZS 3.1 (Região Administrativa X). Esta área é servida pelo Centro Saúde Escola Germano Silval Faria/Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (CSEGSF/ENSP/FIOCRUZ), onde a maioria da população do Complexo de Manguinhos procura atendimento médico. Esta área reúne 12 comunidades conhecidas como Parques ou Conjuntos Habitacionais, classificados como favelas, exceto o Conjunto Habitacional Provisório 2 e o Parque Vila Turismo, que possuem uma infra-estrutura sanitária parcial, com água tratada e sistema de coleta de esgotos, e cuja população apresenta uma situação socioeconômica maior. Estas duas comunidades são separadas por um campo de futebol e uma linha férrea. As comunidades Ex-Combatentes, Parque Oswaldo Cruz, Nelson Mandela, e Samora Machel têm habitações típicas de famílias com baixa renda. A comunidade mais pobre e mais desorganizada é a de Mandela de Pedra, construída ao longo das margens do rio Faria Timbó. Segundo o Instituto de Planejamento do Município do Rio de Janeiro, o Complexo de Manguinhos tem 43.347 habitantes de baixa renda, distribuídos em aproximadamente 8000 residências, com média de 5 habitantes por residência.
Este estudo retrospectivo foi realizado entre janeiro de 2000 a dezembro de 2002. O número de casos reportados foi obtido dos prontuários médicos do CSEGSF e dos dados coletados através do Programa de Controle da Tuberculose (PCT), que é afiliado ao CSEGSF. Todos os pacientes com TB, residentes do Complexo de Manguinhos, tratados e/ou diagnosticados no CSEGSF foram incluídos no estudo. Foi utilizado o programa de computador Excel 7.0 para o gerenciamento, tabulação e análise dos dados. O teste qui-quadrado foi utilizado para avaliar as diferenças entre os anos e entre as comunidades.
De janeiro de 2000 a dezembro de 2002, foram tratados no CSEGSF um total de 290 pacientes com TB, todos residentes do Complexo de Manguinhos. Ao analisar a distribuição dos casos entre as comunidades, observamos diferenças significativas em 2000 e 2001, mas não em 2002 (2000: .2 = 22,78, p = 0,018; 2001: .2 = 20,01, p = 0,045, e 2002: .2 = 10,48, p = 0,487). Em 2000, os maiores números de casos foram relatados nas comunidades do Conjunto Habitacional Provisório 2 (pop. 8655), Samora Machel (pop. 2232), e Mandela de Pedra (pop. 2477), ao passo que, em 2001, o Parque Carlos Chagas (pop. 2828) teve o maior número de casos, seguido por Samora Machel e Mandela de Pedra. Em 2002, Samora Machel esteve no topo da lista, seguido por Ex-Combatentes (pop. 934), mas a diferença entre estas comunidades não foi significativa. Embora a comunidade de Ex-Combatentes seja uma das menores no Complexo de Manguinhos e possua uma boa infra-estrutura sanitária, o número de casos de TB cresceu de 0 em 2000, para 1 em 2001, e 3 em 2002. Entretanto, na menor favela, o Conjunto Agrícola de Higienópolis (pop. 195), nenhum caso foi relatado durante o período do estudo. Na maioria das comunidades estudadas, o número de casos relatados cresceu em 2001. Em três das comunidades com maior densidade populacional (Parque Oswaldo Cruz, pop. 5145; Parque João Goulart, pop. 4719; ed Nelson Mandela, pop. 4448), a taxa de incidência em 2002 foi maior do que a de 2000 (Figura 1). A média da taxa de incidência obtida no período em estudo foi >100/100.000 na maioria das comunidades. Samora Machel, Mandela de Pedra, Parque Carlos Chagas e Conjunto Habitacional Provisório 2 tiveram as maiores taxas médias. Em 2001, Mandela de Pedra apresentou a maior taxa de incidência, registrando 601 casos/100.000 habitantes (Figura 1).
As características clínicas e demográficas de todos os casos de TB notificados no Complexo de Manguinhos durante o período do estudo estão resumidas na Tabela 1. Embora as proporções de casos novos apresentaram pequena redução, este número foi maior em 2001. As taxas de incidência anual para 2000, 2001 e 2002 foram de 157/100.000, 205/100.000 e 145/100.000, respectivamente. Não houve diferenças estatisticamente significativas entre os anos (.2 = 1,407, p = 0,495). Mais de 50% dos pacientes pertenciam à faixa etária produtiva (18-39 anos). Apesar do predomínio do sexo masculino (p = 0,01), o número de pacientes do sexo feminino aumentou de 37,2% em 2000 para 41% em 2002. Entretanto, esta diferença não foi estatisticamente significativa. As porcentagens de pacientes com menos de 18 ou acima de 60 anos de idade foram menores que 7%. A porcentagem de casos de co-infecção com o HIV foi 3 vezes maior em 2001 do que em 2000, caindo para 1,7 vezes maior em 2002. Durante o período do estudo, a porcentagem de pacientes que necessitaram retratamento subiu de 20,9 para 28,4%. A porcentagem de cura aumentou de 55,8 para 62,5%, e a não aderência ao tratamento caiu de 30,2 para 19,3%. A proporção de casos cujo diagnóstico foi alterado aumentou de 1,2 para 5,7%, e a taxa de mortalidade subiu de 3,5% em 2000 para 6,9% em 2001. Entretanto, segundo a análise estatística, não houve diferenças significativas entre os anos, com exceção do número de pacientes com TB pulmonar confirmada por baciloscopia, que aumentou em 2001 (.2 = 10,88, p = 0,004). Embora a proporção de casos de TB extrapulmonar aumentou de 2000 para 2002 (de 11,6 para 14,8%), a diferença não foi significativa.
O perfil epidemiológico da situação da TB no Complexo de Manguinhos nos faz pensar com mais cuidado sobre a distribuição desproporcional da TB no Brasil. Enquanto a incidência da TB é baixa em certas regiões, ela é alta no sudeste do Brasil, e, nas comunidades pobres, a dinâmica da epidemiologia da TB pode se alterar ao longo dos anos de acordo com os problemas sociais e de saúde.(8) No primeiro estudo epidemiológico retrospectivo realizado no Complexo de Manguinhos (1986-1994),(9) as comunidades do Conjunto Habitacional Provisório 2 e do Parque Carlos Chagas apresentaram as maiores prevalências. No presente estudo, a incidência nestas comunidades, embora ainda alta, foi menor do que aquela encontrada no estudo anterior, ao passo que outras comunidades apresentaram taxas semelhantes ou mais altas.
Apesar do serviço de saúde pública local ter um PCT desde 1980, a média da taxa de incidência no Complexo de Manguinhos mantém-se estável em >100/100.000 ao longo dos anos. Na maioria das comunidades avaliadas no presente estudo, o número de casos novos notificados em 2001 foi maior do que nos anos anteriores, embora a diferença não seja estatisticamente significativa. Em Mandela de Pedra, que é a favela mais recentemente estabelecida no Complexo de Manguinhos e uma das mais pobres, sem infra-estrutura urbana ou sanitária, a taxa de incidência da TB em 2001 foi de 601/100.000 (Figura 1). A natureza atípica dos dados coletados em 2001 pode ser explicada pelo fato de que o CSEGSF/ENSP/FIOCRUZ reforçou e reorganizou o PCT naquele ano, retornando a realizar várias atividades, incluindo o monitoramento dos domicílios pelos agentes de saúde. Antes de 2001, o PCT foi desativado devido à violência relacionada ao crime organizado na região. Em 2001, o Programa de Saúde da Família foi também implementado em Mandela de Pedra, o que pode ter sido responsável pela queda da taxa de incidência vista no ano seguinte (para 161/100.000). Em 2002, a taxa de incidência diminuiu em todas as comunidades estudadas, exceto em Samora Machel e Ex-Combatentes, embora estas sejam duas das comunidades mais organizadas. Na primeira, o número de casos novos permaneceu constante (8 casos/ano), ao passo que, na última, o número de casos novos aumentou de 0 em 2000 para 3 em 2002. Todas as comunidades pequenas seguiram os padrões epidemiológicos da TB identificados em comunidades maiores, sugerindo que o PCT precisa ser reforçado para a melhoria da saúde pública na área.
No Complexo de Manguinhos, a não aderência ao tratamento manteve-se muito alta em 2002 (19,3%), bem acima do padrão de 5% estabelecido pelo Ministério da Saúde nacional.(10) Embora a freqüência da co-infecção TB/HIV foi, em 2001, mais baixa no Complexo de Manguinhos do que a verificada em todo o estado do Rio de Janeiro (17,2 x 26%),(10) o número de casos novos no Complexo de Manguinhos foi 3 vezes maior em 2001 do que em 2000.(10) Isto pode estar relacionado ao fracasso do PCT na comunidade, visto que o número de casos cujo tratamento foi interrompido devido à mudança do diagnóstico foi 4 vezes maior do que a taxa de toda a cidade.(10) Coincidentemente, naquele período, um projeto de levantamento sobre a resistência estava sendo realizado, aumentando a precisão diagnóstica na área.
Em locais como o Complexo de Manguinhos, onde a densidade populacional é alta, o nível socioeconômico é baixo e o crime organizado é ativo, o controle da TB é difícil. Embora haja uma tendência de queda do número de casos novos ao longo dos anos, a diferença não foi significativa, sugerindo que a TB continua a ser endêmica na área. Refletir sobre as estratégias adotadas deve levar ao desenvolvimento de medidas para melhorar o desempenho dos PCT nestas populações de alto risco e assim causar mudanças na epidemiologia da TB no futuro próximo.
AgradecimentosEste estudo recebeu apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; Projeto Milênio), da Rede Brasileira de Pesquisa em TB (REDE-TB), da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ; processo nº: E-26/171.546/2002), e da Universidade Johns Hopkins (National Institutes of Health; processo nº: 1U19AI45432-01). O seu conteúdo é de responsabilidade única de seus autores e não necessariamente representa a visão oficial do NIH. Agradecemos também à agente de saúde Eliana dos Santos Silva pelas informações sobre os pacientes, à Selma do Rosário Lima, Chefe do Laboratório do CSEGSF, a ao Dr Luiz Augusto de Araújo Baptista, assim como à Alessandra Rosa, Ary do Carmo, Luciane de Almeida, Riany da Silva Silveira, Simone Marques, e Viviane Menezes, que possibilitaram a realização deste estudo.
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* Trabalho realizado na Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
1. Mestre em Medicina, Centro de Saúde Escola Germano Silval Farias - ENSP - Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
2. Professor titular, Instituto de Microbiologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
3. Mestre em Ciencias, Inst. de Pesquisa do Hospital Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
4. Mestre em Ciencias, Laboratório de Bacteriologia do Inst. de Pesquisa do Hospital Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
5. PhD., Laboratório de Microbiologia Celular, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz - Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
Endereço para correspondência: Maria Helena Feres Saad. Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Oswaldo Cruz, Departamento de Micobacterioses, Av. Brasil, 4365, CEP 21045-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Tel 55 21 25984346. Fax 55 21 22709997. E-mail: saad@ioc.fiocruz.br
Recebido para publicação em 26/7/06. Aprovado, após revisão, em 25/10/06.