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Editorial

Medicamentos ao Norte, doentes ao Sul

Medications to the north, patients to the south

Paulo Augusto Moreira Camargos, Álvaro Augusto Cruz, Jean Bousquet

"Medicaments au Nord, malades au Sud..." ("Medicamentos ao Norte, doentes ao Sul...") A frase fora pronunciada pelo Senhor Bernard Kouchner, então Ministro da Saúde e hoje Ministro das Relações Exteriores da França, como alerta para as iniquidades no tratamento da AIDS: o descompasso entre a ampla disponibilidade de medicamentos nos países centrais do hemisfério norte (caso da França) e a sua carência para os doentes HIV positivos nos países periféricos do continente africano.

Essa frase continua atualíssima e se aplica à asma por um conjunto de razões, entre elas, a falta de reconhecimento da dimensão do problema e das suas repercussões por parte de muitos governos e governantes. O relato de Rodrigo et al. publicado neste fascículo do Jornal Brasileiro de Pneumologia sobre o perfil dos pacientes hospitalizados por asma aguda grave na Espanha e em países latino-americanos, entre eles o Brasil, demonstra isso com clareza.(1) Mutatis mutandis, vários de seus resultados refletem os insuficientes orçamentos para o setor da saúde e a não menos insuficiente assistência farmacêutica que prevalece deste lado do Equador. Em 1997, estimativas da Organização Mundial da Saúde davam conta que a proporção de europeus ocidentais que têm acesso a medicamentos essenciais é superior a 95%, enquanto a parcela dos latino-americanos é de, no máximo, 80%.(2) Nada indica que as mudanças tenham sido substanciais nos últimos dez anos, pois continua marcante o fosso existente no acesso a tais medicamentos quando se comparam os países que foram objeto do artigo acima referido. As enfermidades crônicas não-transmissíveis, as enfermidades respiratórias crônicas e, em particular, a asma, têm sido negligenciadas em políticas de saúde pública em países em desenvolvimento (ditos emergentes), ainda que suas taxas de morbidade e mortalidade relacionadas à asma sejam as maiores.(3)

Grosso modo, Rodrigo et al. revelam em seu artigo que a proporção do uso de corticoides e de β2-agonistas de longa duração inalatórios entre os espanhóis é quatro a seis vezes superior à observada entre os latino-americanos. Esses, na falta de opção de medicamentos de primeira linha, usam o dobro ou triplo de teofilina que aqueles.

Quais são outros reflexos da carência de medicamentos essenciais? Enquanto o número de admissões em unidades de tratamento intensivo diminui lá, ele aumenta no Brasil e nos países vizinhos. A falta de acesso revela como é inadequado o manejo da asma entre as exacerbações, resultando em maior frequência de atendimentos de emergência, de hospitalizações e, possivelmente, de óbitos. Anacronismo: maior taxa de hospitalização justamente numa era em que a palavra de ordem é a "desospitalização". Mais ainda: a reduzida proporção de pacientes com asma moderada a grave que fazem uso de β2-agonistas de longa duração "suggest[s] that a considerable number of these patients received suboptimal treatment", nas palavras dos próprios autores. Essa conclusão é compartilhada com outro estudo sobre asma levado a efeito em vários países da América Latina.(4)

O país do norte é outro como outros são os países do sul. Muda-se o cenário geográfico, permanece aquilo que poderíamos chamar de "apartheid" sanitário. Às repercussões clínicas mencionadas, agregam-se outras, tão deletérias quanto, pois pacientes e familiares são multiplamente penalizados pela carência de medicamentos. Eles são também penalizados porque as hospitalizações têm custos diretos e indiretos para as famílias. Rodrigo et al. nos revelam que é de uma semana o tempo médio de permanência hospitalar, vale dizer, tempo idêntico de absenteísmo ao trabalho.(1) Tempo é dinheiro, segundo o ditado popular e, no que se refere à hospitalização de asmáticos, o adágio foi confirmado em estudos brasileiros entre pacientes com asma grave. Um ano após sua inclusão em um programa de controle, incluindo assistência farmacêutica gratuita, houve redução das hospitalizações e dos atendimentos em serviços de urgência, houve melhoria da qualidade de vida e, cabe destacar, o orçamento familiar foi poupado em cerca de US$ 1.500,00 por ano.(5) Em outras palavras, o custo total da asma chegou a representar 29% da renda familiar.(5,6)

Via de regra, os países latino-americanos carecem de programas nacionais de controle da asma, e, no Brasil em particular, poucos são os municípios que deles dispõem, pois esses programas resultam de iniciativas de alguns poucos profissionais e gestores em reconhecer a relevância do problema e buscar soluções reconhecidamente eficazes.(6-8) Eles ainda se constituem em iniciativas tímidas frente ao tamanho do desafio, mas representam uma estratégia inequívoca para transformar radicalmente o panorama descrito por Rodrigo et al.(1) A falta de atenção à asma em políticas públicas de saúde onera não apenas os pacientes e suas famílias, mas toda a sociedade, aqui incluído o setor produtivo. Há estratégias comprovadamente custo-efetivas para o controle da doença(6) que precisam ser implementadas de forma mais ampla. As quase 250 mil hospitalizações anuais devido à asma custam cerca de 100 milhões de reais para o Sistema Único de Saúde, o que significa dizer que o valor de uma única hospitalização cobriria o custeio do tratamento anual de seis a dez pacientes e romperia com o círculo vicioso da fragmentação da atenção à saúde. Dito de outra forma: recursos há, e eles devem buscar a inversão da atenção focada nas hospitalizações repetidas pela atenção dispensada pela rede de atenção básica, incluindo o Programa de Saúde da Família, e com a montagem de um eficiente sistema de referência e contrarreferência entre essa rede e os níveis secundário e terciário.

Além do empenho de várias sociedades médicas, entre elas a Sociedade Brasileira de Pulmonologia e Tisiologia e a Associação Latino-americana de Tórax, e, no plano internacional, Global Initiative for Asthma e múltiplas outras organizações agrupadas em torno da Global Alliance against Chronic Respiratory Diseases (GARD), liderada pela Organização Mundial da Saúde, fazem parte do Plano de Ação 2008-2013 da Estratégia Global contra Doenças Não-Transmissíveis,(9) que visa a prevenção e o controle das enfermidades crônicas. A GARD desenvolveu o seu Plano de Ação 2008-2013,(10) definindo objetivos, atividades, indicadores e metas para o combate a doenças respiratórias crônicas e adotando a estratégia Practical Approach to Lung Health(11) para a atenção básica integrada ao paciente com sintomas respiratórios. Por conseguinte, no cenário global está delineado o planejamento estratégico para orientar adaptações nacionais construídas por parcerias multissetoriais envolvendo governos, instituições acadêmicas, sociedades de profissionais de saúde e outras entidades públicas ou privadas que visem o combate à asma e a outras doenças respiratórias crônicas. Urge reverter a distância entre a magnitude epidemiológica dessas afecções e a timidez das propostas governamentais, com a implantação de políticas públicas que atribuam à saúde respiratória a atenção necessária para assegurar o direito do cidadão a "respirar livremente" (slogan da GARD). Direito que é incompatível com o ­panorama descrito por Rodrigo et al. neste fascículo.(1)

Paulo Augusto Moreira Camargos
Professor Titular do Departamento de Pediatria da
Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG) Brasil


Álvaro Augusto Cruz
Professor Adjunto da
Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia,
Salvador (BA) Brasil


Jean Bousquet
Professor de Pneumologia,
Université de Montpellier
Montpellier, França


Obs: PAMC é Representante no Brasil da Global Alliance against Chronic Respiratory Diseases (GARD); AAC é Membro do Comitê Executivo da Global Initiative for Asthma (GINA) e do Grupo de Planejamento da GARD; e JB é Chairman da GARD.

Referências

1. Rodrigo GJ, Plaza V, Bellido-Casado J, Neffen H, Bazús MT, Levy G, et al. The Study of Severe Asthma in Latin America and Spain (1994-2004): characteristics of patients hospitalized with acute severe asthma. J Bras Pneumol. 2009;35(7):635-44.

2. Achieving health for all. In: World Health Organization. The World Health Report 1999 - Making a Difference. Geneva: WHO; 1998. p. 159

3. Bousquet J, Khaltaev N; World Health Organization. Global surveillance, prevention and control of chronic respiratory diseases. A comprehensive approach. Geneva: WHO; 2007.

4. Neffen H, Fritscher C, Schacht FC, Levy G, Chiarella P, Soriano JB, et al. Asthma control in Latin America: the asthma insights and reality in Latin America (AIRLA) survey. Rev Panam Salud Publica. 2005;17(3):191-7.

5. Franco R, Santos AC, do Nascimento HF, Souza-Machado C, Ponte E, Souza-Machado A, et al. Cost-effectiveness analysis of a state funded programme for control of severe asthma. BMC Pub Health. 2007;7:82.

6. Franco R, Nascimento HF, Cruz AA, Santos AC, Souza-Machado C, Ponte EV, et al. The economic impact of severe asthma to low-income families. Allergy. 2009:64(3):478-83. Epub 2009 Feb 6

7. Fischer GB, Camargos PA, Mocelin HT. The burden of asthma in children: a Latin American perspective. Paediatr Respir Rev. 2005;6(1):8-13.

8. Cerci Neto A, Ferreira Filho OF, Bueno T, Talhari MA. Reduction in the number of asthma-related hospital admissions after the implementation of a multidisciplinary asthma control program in the city of Londrina, Brazil. J Bras Pneumol. 2008;34(9):639-45.

9. World Health Organization. 2008-2013 Action Plan for the Global Strategy for the Prevention and Control of Noncommunicable Diseases. Geneva: WHO; 2008.

10. World Health Organization. Global Alliance against Chronic Respiratory Diseases Action Plan 2008-2013. Geneva: WHO; 2008.

11. World Health Organization. Practical Approach to Lung Health - Manual on Initiating PAL Implementation. Geneva: WHO; 2008.

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