Uma das grandes contribuições das ciências biomédicas foi a descoberta de que o câncer é uma doença genética. A simplicidade dessa afirmação pode causar surpresa frente à complexidade fisiopatológica dos cânceres. De fato, o câncer inicia-se como consequência de alterações múltiplas no DNA de uma única célula que mudam a sua constituição genômica. Essa célula, por sua vez, passa as alterações para suas descendentes, tornando-se um conjunto de células que se proliferam descontroladamente. Cerca de 10% dos cânceres são hereditários e ocorrem devido a alterações que conferem ao indivíduo uma maior susceptibilidade a agentes químicos, físicos ou virais. A grande maioria dos cânceres, entretanto, é esporádica e adquirida pela exposição a esses agentes. Em ambos os casos, o dano genético ocorre em genes que afetam a homeostase de vários processos biológicos como proliferação, crescimento celular, apoptose, angiogênese, invasão e metástase.(1) Cerca de 384 genes estão associados ao surgimento de diversos cânceres, o que representa mais de 1% do total de genes descritos até o momento.(2) O primeiro câncer que em teoria teve sua base genética descrita foi o câncer colorretal,(3) no qual genes críticos das vias de sinalização Wnt, K-ras, fator transformador de crescimento beta e p53 são afetados durante a progressão do tumor. No presente momento, o grande desafio dos pesquisadores é elucidar o programa genético responsável pelo início e pela progressão tumoral de cada tipo de câncer. Nesse esforço, a genômica e a proteômica têm sido as melhores aliadas dos pesquisadores na busca de biomarcadores que possam auxiliar na compreensão dos mecanismos envolvidos na carcinogênese em vários tecidos como, por exemplo, o pulmão. O câncer de pulmão é o tumor de maior mortalidade em todo o mundo.(4) Os cânceres de pulmão são categorizados em carcinoma de pulmão de células pequenas, um subtipo com fenótipo neuroendócrino, e carcinoma de pulmão de células não-pequenas, o qual inclui adenocarcinoma, carcinoma de células escamosas e carcinoma de grandes células. O tabagismo é o seu principal fator de risco e está associado a 90% dos casos diagnosticados.(5) Estima-se que 15% dos fumantes desenvolvam câncer de pulmão e que 10% dos cânceres de pulmão ocorram em pessoas que nunca fumaram. Entre os não-fumantes, a exposição a carcinógenos e à fumaça de fumantes são fatores de risco para o aparecimento do tumor. Em ambos os casos, o componente hereditário é determinante, pois confere aos indivíduos uma maior predisposição genética ao desenvolvimento do tumor. Genes como o p53, p14ARF, p16INK4a, RB, FHIT e RASSF1A estão relacionados ao câncer de pulmão.(6-10) Além deles, outros setenta genes também foram associados ao desenvolvimento do câncer de pulmão. Tais genes são descritos em um acervo genético (http://www.bioinformatics.org/LuGenD/index.htm) de fundamental importância para o conhecimento do programa genético envolvido no surgimento e desenvolvimento do câncer de pulmão. Três representantes desse acervo, o CYP1A1, o CYP2A6 e o CYP2E1, são membros da família do citocromo P450 e participam do metabolismo de várias drogas, inclusive as derivadas do tabaco, como a 4-(metilnitrosamina)-1-(3-piridil)-1-butanona e a N´-nitrosonornicotina. Variações genéticas em membros dessa família aumentam o risco de surgimento do câncer de pulmão. Nesta edição do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Honma et al. descrevem um estudo que avalia a distribuição do alelo CYP1A1*2A em 200 pacientes com câncer de pulmão e 264 controles negativos.(11) Esse alelo foi associado a uma maior atividade da enzima CYP1A1. O resultado inicial não revelou aumento de risco de câncer de pulmão em pacientes. No entanto, numa segunda análise, considerando a composição étnica dos pacientes e controles, o genótipo CC/TC parece aumentar o risco de câncer de pulmão em pacientes Afro-brasileiros, com odds ratio de 3,19 (IC 95%: 1,53-6,65). Estudos adicionais são necessários para confirmar tal associação. Uma vez confirmada, a pergunta que surge é: por que o risco é maior entre Afro-brasileiros do que entre caucasianos? Essa questão pode ser respondida levando-se em consideração a variabilidade genética das populações humanas que, por sua vez, respondem diferentemente a estímulos endógenos e exógenos. Variações específicas no genoma humano são conhecidas como polimorfismos. Conceitualmente, polimorfismos são variações que estão distribuídas na população numa frequência acima de 1%. Essas variações podem ser substituições (de uma única base), inserções, deleções, variações no número de sequências repetidas e rearranjos complexos ou estruturais. Os single nucleotide polimorfisms (SNPs, polimorfismos de nucleotídeo único) são a forma mais comum de variação genética entre humanos.
Estima-se que na população humana haja de 10 a 12 milhões de SNPs, 4% dos quais ocorrem em regiões codificadoras, podendo afetar a função proteica. Os SNPs, como o do alelo CYP1A1*2A, estão distribuídos entre os grupos étnicos como consequência da história evolutiva de cada população e podem refletir uma predisposição a doenças de base genética como o câncer de pulmão. O estudo da composição genética individual ou populacional também é um aliado importante da medicina contemporânea para a compreensão dos mecanismos moleculares associados à oncogênese e para o desenvolvimento de terapias aplicadas à cura dos cânceres.
Wilson Araújo da Silva Jr
Professor Associado do Departamento de Genética da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
- FMRP/USP - São Paulo (SP) Brasil
Referências
1. Hanahan D, Weinberg RA. The hallmarks of cancer. Cell. 2000;100(1):57-70.
2. Forbes SA, Bhamra G, Bamford S, Dawson E, Kok C, Clements J et al. The Catalogue of Somatic Mutations in Cancer (COSMIC). Curr Protoc Hum Genet. 2008;Chapter 10:Unit 10.11.
3. Fearon ER, Vogelstein B. A genetic model for colorectal tumorigenesis. Cell. 1990;61(5):759-67.
4. World Health Organization: Agency for Research on Cancer. Fact sheet No. 297. February 2009. Available from: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs297/en/print.html
5. Shopland DR. Tobacco use and its contribution to early cancer mortality with a special emphasis on cigarette smoking. Environ Health Perspect. 1995;103(Suppl 8):131-42.
6. Tammemagi MC, McLaughlin JR, Bull SB. Meta-analyses of p53 tumor suppressor gene alterations and clinicopathological features in resected lung cancers. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev. 1999;8(7):625-34.
7. Gazzeri S, Della Valle V, Chaussade L, Brambilla C, Larsen CJ, Brambilla E. The human p19ARF protein encoded by the beta transcript of the p16INK4a gene is frequently lost in small cell lung cancer. Cancer Res. 1998;58(17):3926-31.
8. Cagle PT, el-Naggar AK, Xu HJ, Hu SX, Benedict WF. Differential retinoblastoma protein expression in neuroendocrine tumors of the lung. Potential diagnostic implications. Am J Pathol. 1997;150(2):393-400.
9. Roz L, Gramegna M, Ishii H, Croce CM, Sozzi G. Restoration of fragile histidine triad (FHIT) expression induces apoptosis and suppresses tumorigenicity in lung and cervical cancer cell lines. Proc Natl Acad Sci USA. 2002;99(6):3615-20.
10. Burbee DG, Forgacs E, Zöchbauer-Müller S, Shivakumar L, Fong K, Gao B et al. Epigenetic inactivation of RASSF1A in lung and breast cancers and malignant phenotype suppression. J Natl Cancer Inst. 2001;93(9):691-9.
11. Honma HH, De Capitani EM, Barbeiro AS, Costa DB, Morcillo A, Zambon L. Polymorphism of the CYP1A1*2A gene and susceptibility to lung cancer in a Brazilian population. J Bras Pneumol. 2009;35(8):767-772.