Atualmente os distúrbios respiratórios do sono devem ser considerados como um amplo espectro de eventos fisiopatológicos, com repercussões clínicas sistêmicas, que durante algum tempo foram agrupadas sob o rótulo único de síndrome da apnéia do sono. Evidências mais recentes, indicam uma evolução que tende a ser progressiva-da roncopatia primária à síndrome das apnéias-hipopnéias obstrutivas do sono (SAHOS), de clássica apresentação.(1,2) Esta evolução perpassa por distintos estágios de um mesmo processo fisiopatológico, e não apenas como uma doença específica ou como uma única síndrome. Assim, por exemplo, numa faixa intermediária deste espectro podemos identificar roncopatias, com sonolência diurna excessiva, sem apnéias ou hipopnéias, mas com freqüentes despertares, precedidos por episódios crescentes de pressão negativa intratorácica, a chamada síndrome da resistência das vias aéreas superiores.(3) Ao longo do tempo, estas condições podem se entrelaçar ou até mesmo se sobrepor, a depender de "gatilhos" circunstanciais: aumento de peso, uso de álcool, sedativos, hipnóticos, etc.
A obesidade, segundo a Organização Mundial de Saúde, já constitui uma epidemia global, atribuível sobretudo ao estilo de vida sedentário, ao maior consumo de alimentos ricos em gordura animal e ao acesso da população de baixa renda a alimentos anteriormente inacessíveis. Os dados nacionais da Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, refletem esta tendência universal. No Biênio 2003-2004, dos 95,5 milhões de brasileiros com mais de 20 anos de idade, 38,8 milhões tinham sobrepeso (40,6%) e 10,5 milhões foram considerados obesos (8,9% dos homens e 13,1% das mulheres), ou seja, o Brasil também vive um processo de engorda e que, em última análise já está determinando mudanças nos perfis de morbidade e de mortalidade em nossa população. Não sem razão, estudos clínicos e epidemiológicos têm demonstrado uma forte associação entre a obesidade e a SAHOS, com prevalência variando de 40 a 90%.(4,5) No artigo "Síndrome das apnéias-hipopnéias obstrutivas do sono: associação com gênero e obesidade e fatores relacionados à sonolência", desta edição do Jornal Brasileiro de Pneumologia,(6) encontramos um retrato fidedigno daquilo que se nos afigura na realidade da prática clínica, desta área fascinante da pneumologia. Os autores deste artigo original, através de um estudo transversal em 300 pacientes com a SAHOS, reafirmam as repercussões desta mórbida relação com a obesidade, destacando o índice de massa corpórea (IMC), como o parâmetro clínico com maior impacto sobre a gravidade da SAHOS. Em estudo anterior encontramos resultados semelhantes, no perfil de 1.595 pacientes avaliados em laboratório de sono, em Salvador (BA).(7) Independentemente do IMC, a distribuição da gordura corporal, e em particular a obesidade central é fator relevante a se considerar nestas circunstâncias, com ênfase especial para a relação cintura-quadril e a circunferência do pescoço-este último considerado o melhor fator preditivo com relação à presença de SAHOS.(2) Em investigação recente utilizando ressonância magnética em via aérea superior, na avaliação de indivíduos obesos com e sem a SAHOS,(8) observamos que a maior deposição de gordura à este nível anatômico, isoladamente, não representa fator preponderante para o desenvolvimento da SAHOS.
Destaque especial merece ser dado à correlação SAHOS, sonolência e acidentes de trânsito, muito bem documentada no artigo desta edição. Nós pneumologistas, cada vez mais desempenharemos o papel de gestores da boa qualidade de vida, seja através do controle da poluição ambiental, da boa performance aeróbica, da luta antitabágica, das medidas saneadoras na área ocupacional, e por extensão da redução de danos e agravos à vida das pessoas. Neste sentido, a identificação de portadores de SAHOS e o correto tratamento dos mesmos, , implicará inexorávelmente a diminuição das nossas estatísticas de acidentes de trânsito em que, tristemente, somos "campeões" mundiais. Ainda neste artigo, no que considero a sua maior contribuição, foi relatado que dos 300 pacientes estudados 238 dirigiam automóvel e destes 106 (44,5%) referiam adormecer sempre ou muitas vezes dirigindo, e como seria de esperar apresentavam escores de sonolência bem mais elevados.
Clássicamente os portadores de SAHOS referem dois pontos cardinais: Ronco e sonolência excessiva.(9,10) A simples presença da SAHOS aumenta em até sete vezes o risco para acidentes automobilísticos por sonolência ao volante.(1,9,11) Recentemente o Conselho Nacional de Trânsito, adotando estratégia já em curso em outros países, recomendou a realização de polissonografia nos indivíduos com suspeição clínica para SAHOS, identificados nos exames médicos imprescindíveis à liberação de carteiras profissionais para direção veicular (ônibus, carretas e caminhões). Algumas empresas de transporte rodoviário no Brasil, já assumiram esta postura com a avaliação rotineira dos seus motoristas, tratando os casos identificados de SAHOS, com resultados alvissareiros-reduzindo substancialmente a ocorrência de sinistros nas estradas, e, acabando com os acidentes "inexplicáveis" em que o veículo voa literalmente ribanceira abaixo, sem nenhuma marca de frenagem no asfalto, e o motorista quando sobrevive afirma que estava "cansado".
Ainda outro dia numa estrada qualquer da Bahia, lí num pára-choque de caminhão: "É melhor ser feliz do que ter razão". Destarte a postulação filosófica digna de um Platão, entendo que nem tudo o que vale para o amor deve valer para a ciência, e portanto, neste axioma necessitaremos de razão para sermos felizes. Existem ainda os que consideram a razão inimiga da imaginação, mas também nesta proposição não precisaremos ir longe, para imaginar a presença de motoristas apnéicos, rechonchudos e sonolentos a ressonar pelas estradas do Brasil.
Francisco Hora de Oliveira Fontes
Professor do Departamento de Medicina, Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil
Mestre em Medicina Interna pela Universidade Federal da Bahia - UFBA - Salvador (BA) Brasil
Doutor em Pneumologia pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP -
São Paulo (SP) Brasil
Referências
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2. Davies RJ, Ali NJ, Stradling JR. Neck circumference and other clinical features in the diagnosis of the obstructive sleep apnoea syndrome. Thorax. 1992;47(2):101.
3. Guilleminault C, Stoohs R, Clerk A, Cetel M, Maistros P. A cause of excessive daytime sleepiness. The upper airway resistance syndrome. Chest. 1993;104(3):781-7.
4. Wittels EH, Thompson S. Obstructive sleep apnea and obesity. Otolaryngol Clin North Am. 1990;23(4):751-60.
5. Johns MW. Daytime sleepiness, snoring, and obstructive sleep apnea: the Epworth sleepiness scale. Chest. 1993;103(1):30-6.
6. Knorst MM, Souza FJ, Martinez D. Obstructive sleep apnea-hypopnea syndrome: association with gender, obesity and sleepiness-related factors. J Bras Pneumol. 2008;34(7)490-6.
7. Daltro CH, Fontes FH, Santos-Jesus R, Gregório PB, Araújo LM. Síndrome da apnéia e hipopnéia obstrutiva do sono: associação com obesidade, gênero e idade. Arq Bras Endocrinol Metab. 2006;50(1):74-81.
8. Hora F, Napolis LM, Daltro C, Kodaira SK, Tufik S, Togeiro SM, et al. Clinical, anthropometric and upper airway anatomic characteristics of obese patients with obstructive sleep apnea syndrome. Respiration. 2007;74(5):517-24. Epub 2006 Dec 5.
9. Young T, Palta M, Dempsey J, Skatrud J, Weber S, Badr S. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med. 1993;328(17):1230-5
10. Stradling JR, Crosby JH. Predictors and prevalence of obstructive sleep apnoea and snoring in 1001 middle-aged men. Thorax. 1991;46(2):85-90.
11. Masa JF, Rubio M, Findley LJ. Habitually sleepy drivers have a high frequency of automobile crashes associated with respiratory disorders during sleep. Am J Respir Crit Care Med. 2000;162(4 Pt 1):1407-12.