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Relato de Caso

Síndrome hemofagocítica devido a sarcoidose pulmonar

Hemophagocytic syndrome due to pulmonary sarcoidosis

Thiago Prudente Bártholo, José Gustavo Pugliese, Thiago Thomaz Mafort, Vinicius Lemos da Silva, Cláudia Henrique da Costa, Rogério Rufino

ABSTRACT

Although hemophagocytic syndrome is a rare clinical condition, it is associated with high mortality and the number of cases described in the literature has progressively increased. The diagnosis of hemophagocytic syndrome is made on the basis of a finding of hemophagocytosis. Sarcoidosis is a highly prevalent disease whose course and prognosis might correlate with the initial clinical presentation and the extent of the disease. We report the case of a patient with long-standing sarcoidosis who presented with intermittent fever and fatigue. The diagnosis of hemophagocytic syndrome was made by bone marrow aspiration, and specific treatment was ineffective. This is the third case of sarcoidosis-related hemophagocytic syndrome reported in the literature and the first reported in Latin America. All three cases had unfavorable outcomes.

Keywords: Lymphohistiocytosis, hemophagocytic; Ferritins; Sarcoidosis, pulmonary; Macrophage activation syndrome.

RESUMO

Embora seja uma condição clínica rara, a síndrome hemofagocítica é associada com alta mortalidade e o número de casos descritos na literatura vem aumentando progressivamente. O diagnóstico de síndrome hemofagocítica depende da presença de hemofagocitose. A sarcoidose é uma doença de alta prevalência cujo curso e prognóstico podem correlacionar-se com a apresentação clínica inicial e a extensão da doença. Relatamos o caso de um paciente com sarcoidose de longa duração que apresentava febre intermitente e fadiga. O diagnóstico de síndrome hemofagocítica foi realizado por aspirado de medula óssea, e o tratamento específico foi ineficaz. Trata-se do terceiro caso de síndrome hemofagocítica relacionada a sarcoidose na literatura mundial e o primeiro na literatura latino-americana. Os três casos tiveram desfecho desfavorável.

Palavras-chave: Linfohistiocitose hemofagocítica; Ferritinas; Sarcoidose pulmonar; Síndrome de ativação macrofágica.

Introdução

A sarcoidose é uma doença inflamatória granulomatosa crônica cuja etiologia é desconhecida e cujos desfechos são heterogêneos. Com base na história natural da doença ou no curso do tratamento clínico, os desfechos dos casos podem ser divididos em regressão espontânea (doença autolimitada), progressão de lesões fibróticas extensas na forma de fibrose pós-granulomatosa ou associação entre sarcoidose e outras doenças hematológicas, tais como síndrome mielodisplásica, leucemia mieloide aguda, doença relacionada a IgG4, linfoma, hipogamaglobulinemia, doença de Castleman e, menos frequentemente, tumores sólidos. A regressão espontânea ocorre em quase dois terços dos casos; os demais casos são os mais desafiadores no que tange ao tratamento e ao seguimento.(1-4)

Relato de caso

Um homem de 56 anos que em 1991 recebera diagnóstico de sarcoidose baseado em achados de biópsia cutânea apresentou lesões pulmonares e cutâneas. Desde o diagnóstico de sarcoidose, o paciente recebia doses diárias de prednisona (10 mg/dia) a fim de controlar a atividade da doença. O paciente estivera bem até março de 2010, quando apresentou episódios de febre. Foi tratado em um pronto-socorro, com amoxicilina + clavulanato. A febre não cedeu. Dez dias depois, o paciente procurou atendimento de emergência novamente (no mesmo pronto-socorro) e recebeu levofloxacina. A febre persistiu, seguida de dispneia leve, e o paciente perdeu 5 kg em um mês. Duas semanas após o término do segundo ciclo de antibióticos, o paciente retornou para uma visita não agendada. O exame físico revelou eupneia e parâmetros hemodinâmicos estáveis. Entretanto, o paciente permanecia febril. A dose de prednisona foi aumentada para 40 mg/dia. Um mês depois, os sintomas persistiam, e o paciente retornou. O hemograma revelou a presença de leucocitose (neutrófilos: 32%). Além disso, o paciente apresentava anemia e trombocitopenia. Eletrólitos, creatinina e ureia estavam normais, e as culturas de sangue e urina apresentaram resultados negativos (Tabela 1). O paciente foi hospitalizado a fim de se conduzir uma investigação minuciosa. O paciente tinha histórico médico de diabetes e dislipidemia, porém negava alergias, transfusões de sangue, tabagismo e uso de álcool.



No momento da internação, o paciente estava febril (39°C) e um pouco ansioso. Não apresentava icterícia, rash ou linfadenopatia. Apresentava pressão arterial = 130/70 mmHg, FR = 21 ciclos/min, SaO2 = 96% e FC = 88 bpm. O exame cardiovascular não revelou alterações. O exame pulmonar revelou sons respiratórios normais. O exame físico não revelou nenhuma alteração digna de nota. Os resultados dos exames laboratoriais realizados no momento da internação foram semelhantes aos dos relatados anteriormente. A radiografia de tórax não apresentava alterações.

No momento da internação, foram prescritos os antibióticos ceftriaxona, amicacina e vancomicina. Novas culturas de espécimes de sangue e urina apresentaram resultados negativos. No 10º dia de internação, o paciente apresentou icterícia e tremor das mãos (flapping). Não houve alterações dignas de nota no nível de consciência ou nos parâmetros hemodinâmicos. Os resultados dos exames laboratoriais foram consideravelmente piores (Tabela 1). A TCAR de tórax não revelou nenhuma alteração, e o ecocardiograma transtorácico não apresentou nenhuma alteração digna de nota. Tanto a ultrassonografia como a TC abdominal apresentaram resultados normais. Tanto a sorologia para HIV, vírus Epstein-Barr e hepatite como os marcadores reumatológicos (anticorpos antinucleares, fator reumatoide e anticorpo anticitoplasma de neutrófilos) apresentaram resultados negativos. O exame direto do sangue revelou a presença de leucocitose (41.100 células/mm3), trombocitopenia (25.000 plaquetas/mm3) e anemia (hemoglobina: 7,2 g/dL; hematócrito: 21%; ferritina: 690,6 ng/dL e ferro sérico: 50 mg/dL). No 20º dia de internação, o paciente apresentou débito urinário reduzido, insuficiência hepática (com hepatomegalia e esplenomegalia) e insuficiência respiratória. Passou então a receber ventilação mecânica, hemodiálise e vasopressores. Quatro culturas de sangue apresentaram resultados negativos. A sorologia para erliquiose, bartonelose e febre Q apresentou resultados negativos. Repetiu-se a dosagem de ferritina (1.619 ng/dL). Solicitou-se um mielograma devido à febre inexplicável, trombocitopenia e ferritina sérica elevada; o exame mostrou fagocitose de glóbulos vermelhos por macrófagos (Figura 1). Estabeleceu-se o diagnóstico de síndrome hemofagocítica (SHF), e o paciente passou a receber pulso de metilprednisolona no departamento de hematologia, porém sem sucesso. O paciente morreu quatro dias após o início da corticoterapia.



Discussão

Embora rara, a SHF é uma condição potencialmente fatal. O diagnóstico de SHF baseia-se em uma combinação de sinais clínicos e biológicos e exige, além de exame histológico/citológico para detecção de hemofagocitose, uma investigação etiológica exaustiva.(5) A doença é classificada em SHF primária ou secundária.(6) As duas formas são clinicamente indistinguíveis e são caracterizadas por uma apresentação semelhante à da sepse, com esplenomegalia, citopenia, hiperferritinemia, coagulopatia e hemofagocitose. Consequentemente, os pacientes comumente apresentam falência de múltiplos órgãos, o que leva a elevada mortalidade.(7) A SHF é hereditária; a maioria dos pacientes apresenta sintomas dois anos após o nascimento e é tratada no âmbito pediátrico.(6) A forma primária da SHF segue um padrão autossômico recessivo de herança, com incidência de aproximadamente 1/50.000 nascidos vivos.(7) A SHF primária pode resultar de defeitos autossômicos ou estar associada a imunodeficiências, tais como a síndrome de Chediak-Higashi, síndrome linfoproliferativa ligada ao cromossomo X e síndrome de Griscelli.(8) Foram descritos cinco tipos de SHF familiar.(9) O prognóstico é ruim. A SHF secundária surge na fase adulta na maioria dos pacientes. A incidência da SHF associada a infecção (particularmente a da SHF associada a vírus) é elevada, assim como o é a da SHF associada a linfoma.(6) Outras condições associadas à SHF secundária incluem doenças autoimunes como artrite reumatoide, doença de Still, dermatomiosite, sarcoidose, lúpus eritematoso sistêmico e vasculite. Drogas como betabloqueadores e agentes quimioterápicos foram descritas como causas de SHF secundária.(6,7,10) A hemorragia alveolar difusa foi descrita como manifestação de SHF.(11,12)

A SHF é caracterizada pela proliferação de macrófagos benignos responsáveis por extensa fagocitose de células hematopoiéticas, o que se deve a uma resposta hiperinflamatória que pode afetar a função citotóxica de linfócitos T e células matadoras naturais.(13) Essa resposta inflamatória é induzida por uma "tempestade de citocinas" e é caracterizada pela proliferação e ativação de macrófagos no sistema reticuloendotelial.(14,15) As funções normais dos histiócitos incluem fagocitose, apresentação de antígenos e ativação do sistema imune adaptativo por meio de sinalização por contato e de sinalização de citocinas. Embora haja relatos de alterações na função das células matadoras naturais em pacientes com SHF, o número de células matadoras naturais raramente aumenta nesses pacientes. A SHF é um processo reativo que resulta da ativação prolongada e excessiva de células apresentadoras de antígenos (isto é, macrófagos, histiócitos e células T CD8+). Conforme afirmou Filipovich,(16) "a hemofagocitose, que é mediada pelo receptor CD163 (CD163 heme-scavenging receptor em inglês), é um atributo marcante de macrófagos/histiócitos ativados e é o achado característico que dá nome à doença. A maioria das causas genéticas identificadas até hoje afeta a função citotóxica das células matadoras naturais e das células T, debilitando mecanismos imunológicos que mediam a contração imune natural. As células matadoras naturais e as células T matadoras naturais desempenham um papel fundamental na manutenção de um limiar saudável de resposta imune a estímulos externos nocivos e são essenciais para a prevenção e o controle de doenças autoimunes e reações graves a infecções virais."

Os critérios diagnósticos para a SHF, desenvolvidos pela Histiocyte Society, são apresentados no Quadro 1.(17) A hemofagocitose pode ser estabelecida não só na medula óssea como também em tecidos linfoides como fígado, baço, e linfonodos. A identificação histológica de hemofagocitose é considerada o padrão ouro para o diagnóstico de SHF; entretanto, em até 20% dos pacientes, o exame histológico do espécime obtido pela primeira biópsia de medula óssea não revela a presença de hemofagocitose. Devido ao fato de que a hemofagocitose pode ocorrer em diferentes locais ao longo do curso da doença, repetidas biópsia são às vezes necessárias para que se estabeleça o diagnóstico de SHF.(7) Okamoto et al.(6) investigaram 28 pacientes com SHF secundária e sem histórico de hiperlipidemia. Os resultados obtidos sugerem que o nível de triglicérides é útil para diagnosticar a SHF e avaliar a resposta ao tratamento.(6) Os níveis de ferritina constituem um importante parâmetro diagnóstico. Entretanto, níveis de ferritina ligeiramente elevados podem ser encontrados em diversas doenças inflamatórias e são, portanto, inespecíficos. Não obstante, níveis de ferritina maiores que 10.000 µg/L são encontrados apenas em pacientes com SHF, doença de Still ou histiocitose maligna, bem como naqueles que tenham recebido múltiplas transfusões de sangue.(7) De acordo com Knovich et al.,(18) "em um estudo prospectivo de pacientes adultos com SHF, a porcentagem de ferritina glicosilada foi menor nos pacientes com SHF, o que sugere que a ferritina glicosilada diminuída possa ser um marcador de SHF grave. Levanta-se a hipótese de que a ferritina elevada se deva à liberação passiva por dano celular no fígado e no baço, ao aumento da secreção por macrófagos ou hepatócitos ou à redução da depuração devido a menor glicosilação ou regulação negativa dos receptores de ferritina." Sem tratamento intensivo, a SHF grave é fatal. Em pacientes adultos, o tratamento intensivo precoce pode aumentar as chances de sobrevivência.(7)



Casos de SHF secundária a sarcoidose são muito raros. Dhote et al. estudaram 26 pacientes com SHF secundária, um dos quais tinha sarcoidose pulmonar.(19) Os autores de outro estudo relataram um caso de tuberculose miliar complicada por SHF em um paciente que recebera diagnóstico de sarcoidose.(20) Nos dois casos (sarcoidose e SHF), os pacientes morreram, tendo apresentado febre, trombocitopenia e elevados níveis de triglicérides.

No presente caso, o paciente apresentou síndrome semelhante à sepse após um período de dois meses com febre, dispneia leve e perda de peso. Após uma investigação minuciosa, encontramos células hemofagocíticas em aspirado de medula óssea. A aspiração da medula óssea é um procedimento hematológico comum e seguro que deve ser realizado em pacientes com trombocitopenia ou leucopenia de causa desconhecida, como foi o caso de nosso paciente. Em conformidade com a literatura, nosso paciente precisou ser transferido para a UTI. Não obstante, morreu de disfunção de múltiplos órgãos. O paciente recebera diagnóstico de sarcoidose nove anos antes do início da SHF. Entretanto, dependia de corticoides para que permanecesse livre de sintomas. É impossível determinar se este foi um caso de SHF primária em um paciente com sarcoidose ou se a SHF surgiu como complicação de doença ainda ativa.

Em suma, a associação entre SHF e sarcoidose é muito rara. Deve-se considerar o diagnóstico de SHF em pacientes com febre inexplicável e altos níveis de ferritina e triglicérides. No presente caso, a aspiração da medula óssea foi uma ferramenta essencial para o diagnóstico de SHF.

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* Trabalho realizado no Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.
Endereço para correspondência: Rogério Rufino. Avenida 28 de Setembro, 77, 2º andar, Departamento de Pneumologia,
CEP 20551-030, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Tel/Fax: 55 21 2868-8248. E-mail: rrufino@uerj.br
Apoio financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 19/2/2012. Aprovado, após revisão, em 3/4/2012.




Sobre os autores

Thiago Prudente Bártholo
Médico Pneumologista. Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.

José Gustavo Pugliese
Médico Pneumologista. Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.

Thiago Thomaz Mafort
Médico Pneumologista. Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.

Vinicius Lemos da Silva
Professor de Clínica Médica. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.

Cláudia Henrique da Costa
Professora Adjunta. Disciplina de Pneumologia e Tisiologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.

Rogério Rufino
Professor Adjunto. Disciplina de Pneumologia e Tisiologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ) Brasil.

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