ABSTRACT
Objective: To describe the outcomes of retreatment in tuberculosis patients receiving the regimen known, in Brazil, as regimen 3 (streptomycin, ethambutol, ethionamide, and pyrazinamide for 3 months + ethambutol and ethionamide for 9 months) after treatment failure with the basic regimen (rifampin, isoniazid, and pyrazinamide for 2 months + rifampin and isoniazid for 4 months). Methods: A descriptive, uncontrolled, historical cohort study involving adult tuberculosis patients treated with regimen 3. We evaluated adverse drug effects, recurrence, treatment outcomes, and associated factors. Results: The study included 229 patients. The overall cure rate was 62%. For the patients who used the medications regularly and those who did not, the cure rate was 88% and 31%, respectively. Adverse events occurred in 95 patients (41.5%), and most of those events were related to the gastrointestinal tract. In the five-year follow-up period, relapse occurred in 17 cases (12.0%). Conclusions: Overall, the outcomes of treatment with regimen 3 were unsatisfactory, in part because this regimen was administered to a selected population of patients at high risk for noncompliance with treatment, as well as because it presents high rates of adverse effects, especially those related to the gastrointestinal tract, which might be caused by ethionamide. However, for those who took the medications regularly, the cure rate was satisfactory. The recurrence rate was higher than that recommended in international consensus guidelines, which might be attributable to the short (12-month) treatment period. We believe that regimen 3, extended to 18 months, represents an option for patients with proven treatment compliance.
Keywords:
Tuberculosis, pulmonary/therapy; Treatment outcome; Retreatment.
RESUMO
Objetivo: Descrever os desfechos do retratamento de pacientes com tuberculose com o uso do esquema 3 (estreptomicina, etambutol, etionamida e pirazinamida por 3 meses + etambutol e etionamida por 9 meses) devido à falência do tratamento com o esquema básico (rifampicina, isoniazida e pirazinamida por 2 meses + rifampicina e isoniazida por 4 meses). Métodos: Estudo descritivo de coorte histórica, não controlada, com adultos que foram tratados com o esquema 3. Foram avaliados os desfechos desse tratamento, as reações adversas aos fármacos, as recidivas e os fatores associados. Resultados: Foram incluídos no estudo 229 pacientes. A taxa de cura geral foi de 62%. Entre os pacientes que usaram a medicação regularmente e aqueles que a usaram irregularmente, a taxa de cura foi de 88% e 31%, respectivamente. Observaram-se reações adversas em 95 pacientes (41,5%), principalmente digestivas. Ocorreram 17 recidivas (12,0%) nos cinco anos de seguimento. Conclusões: Os desfechos com o uso do esquema 3, em geral, não foram satisfatórios, pois esse esquema foi aplicado em uma população selecionada com alto risco de não adesão ao tratamento e apresenta altas taxas de reações adversas, especialmente as de tipo digestivo, possivelmente causadas pela etionamida. No entanto, para aqueles que conseguiram tomar a medicação regularmente, a taxa de cura foi satisfatória. A taxa de recidiva foi superior àquela preconizada por consensos internacionais, possivelmente devido ao tempo de tratamento curto (apenas 12 meses). Acreditamos que o esquema 3 estendido para 18 meses poderia ser uma alternativa para pacientes com comprovada adesão ao tratamento.
Palavras-chave:
Tuberculose pulmonar/terapia; Resultado de tratamento; Retratamento.
IntroduçãoEntre o início da década de 1980 até o final de 2009, no Brasil, para os casos de falência do tratamento da tuberculose (TB) com o esquema básico - composto por rifampicina, isoniazida e pirazinamida - conhecido no Brasil como esquema 1 ou esquema RHZ, recomendava-se a utilização de estreptomicina, etambutol, etionamida e pirazinamida, regime esse conhecido como esquema 3 ou esquema SEEtZ.(1) Tratava-se, portanto, de um esquema de retratamento aplicado a pacientes que apresentaram falência operacional (identificada por critérios clínicos, bacterioscópicos e radiológicos, sem o uso de testes de sensibilidade) na vigência da administração de rifampicina e isoniazida. Assume-se que os bacilos tornaram-se resistentes a esses dois fármacos, preenchendo os critérios da Organização Mundial da Saúde para serem considerados como casos de TB multirresistente (TBMR).(2)
Para o tratamento da TBMR, vários autores recomendam a utilização de pelo menos quatro fármacos, de preferência nunca usados pelo paciente, entre eles uma quinolona e um injetável (estreptomicina, canamicina, amicacina ou capreomicina). Além disso, os fármacos devem ser utilizados por, pelo menos, 18 meses.(2)
O esquema 3, além de não possuir em sua formulação uma quinolona, é aplicado por somente 12 meses. Contém, na fase intensiva de 3 meses, estreptomicina, etionamida e etambutol, medicamentos não utilizados anteriormente, acrescidos de pirazinamida, que foi utilizada nos primeiros 2 meses com o esquema 1. É relativamente comum os pacientes terem sido expostos a pirazinamida mais de uma vez até ser constatada a falência desse esquema, restando a dúvida sobre a real sensibilidade do bacilo a esse fármaco. Na fase de continuação, de 9 meses, mantém-se o uso de etionamida e etambutol, sendo a etionamida um fármaco de difícil tolerância digestiva.(3) A partir de 2010, o esquema 3 foi substituído por um novo esquema para TBMR, denominado esquema MR, composto por cinco fármacos (estreptomicina, levofloxacina, terizidona, etambutol e pirazinamida) aplicados por 18 meses.(4)
Atualmente, existem poucos relatos de estudos no Brasil que tenham avaliado a eficácia e a eficiência do esquema 3.(5-7) O objetivo deste estudo foi descrever os desfechos, as reações adversas e as recidivas do retratamento da TB com o esquema 3 e fatores associados. Mesmo que os dados tenham sido coletados há mais de 10 anos, os achados deste estudo poderão contribuir para o aumento da base de conhecimento sobre o esquema 3 e, eventualmente, ser úteis como elementos de comparação com os desfechos que serão obtidos no futuro com o novo esquema MR em populações semelhantes.
MétodosEste é um estudo descritivo de uma coorte histórica, não controlada. Os dados são de natureza secundária, coletados tanto com a finalidade de acompanhar a evolução dos pacientes, quanto por interesse acadêmico, pois, à época, os pesquisadores planejavam utilizá-los em futuras publicações, o que fez com que os dados tenham sido coletados e registrados com rigor adequado.
Os procedimentos diagnósticos e terapêuticos eram padronizados, e os dados eram registrados em fichas clínicas pelos próprios autores, que eram os médicos assistentes. As informações das fichas clínicas foram digitadas em um banco de dados eletrônico por dois dos autores utilizando o aplicativo dBASE III (Ashton-Tate, 1985). De cada paciente, foram registradas 75 variáveis, que incluíam dados demográficos e antropométricos, dados sobre alcoolismo, exames diagnósticos, história de tratamentos anteriores para TB e informações sobre o tratamento atual, incluindo a evolução baciloscópica, reações adversas e desfechos.
Para a detecção das recidivas, foram feitas buscas nos livros de registros dos ambulatórios, cobrindo um período de 5 anos após a alta por cura de cada paciente, e no antigo Sistema de Informação do Programa Estadual de Controle da Tuberculose do Rio Grande do Sul, sistema eletrônico de registro obrigatório para todos os casos de TB. A ampla cobertura desse sistema garantia que praticamente 100% dos casos diagnosticados de TB tenham sido registrados.
A população estudada foi composta por pacientes em retratamento para TB, residentes na região metropolitana de Porto Alegre (RS) no período entre 1983 e 1993. Os critérios de inclusão na amostra foram ter no mínimo 18 anos de idade e apresentar falência operacional do esquema 1. Foram excluídas as gestantes. Naquele período, todos os pacientes com falência do esquema 1 eram atendidos em três ambulatórios de Porto Alegre. Os pesquisadores tiveram acesso aos dados dos pacientes de dois desses ambulatórios, de modo que puderam incluir nesta pesquisa dados de aproximadamente 65% dos casos na cidade de Porto Alegre e 100% dos casos nos demais municípios que compunham a região metropolitana. Eram pacientes oriundos de demanda espontânea e admitidos sequencialmente nos ambulatórios.
Os pacientes foram tratados com o esquema SEEtZ nos 3 primeiros meses, seguido de um esquema com etambutol e etionamida até completar 12 meses. O tratamento foi autoadministrado, com a entrega dos fármacos nos ambulatórios de TB a cada 30 dias.
Foram avaliados os desfechos do tratamento, as reações adversas aos fármacos, as recidivas e os fatores associados.
Os desfechos foram definidos como cura (evolução favorável com negativação permanente da baciloscopia de escarro até o término do tempo convencional de tratamento), abandono (não comparecimento na unidade de saúde por tempo superior a 30 dias após a última consulta), falência (evolução desfavorável, com baciloscopia positiva no escarro por 2 meses consecutivos ou mais, a partir do 4º ou 5º mês de tratamento), óbito (por qualquer causa durante o período de tratamento) e troca de esquema por toxicidade (troca de um ou mais fármacos motivada por reações adversas).
As reações adversas observadas foram classificadas como digestivas (sintomas como náuseas, vômitos e epigastralgia), dermatológicas (erupções cutâneas), articulares (dores articulares e artrite), auditivas/vestibulares (surdez, zumbidos e tontura), hepáticas (sinais e/ou sintomas de dano hepático e provas de função hepática alterada) e visuais (dificuldade para definir as cores).
Foi considerado como sendo caso de recidiva todo paciente curado com o esquema 3 que voltou a apresentar TB pulmonar bacilífera após 3 ou mais meses da cura, até 5 anos após a alta.
A presença de reações adversas, a idade dos pacientes, o sexo, a cor da pele (branca e não branca), o uso abusivo de álcool, o modo de uso dos fármacos anti-TB (regular ou irregular) e as doses desses (por kg de peso corporal) foram avaliados como fatores prognósticos em relação aos desfechos do tratamento ou como fatores de risco em relação às recidivas. Essas mesmas variáveis, com exceção da primeira, também foram avaliadas como potenciais fatores de risco para a ocorrência de reações adversas.
O modo de uso dos fármacos foi avaliado pela regularidade no comparecimento nas consultas e a partir das informações obtidas com o paciente e/ou familiares, registradas no prontuário. Foi considerado como irregular todo paciente que não tomou 10% ou mais das doses recomendadas dos fármacos.
A dose diária dos fármacos foi calculada com base na dose inicial prescrita e no peso do paciente no início do tratamento (mg/kg por dia).
Os desfechos são apresentados como média e desvio-padrão ou frequência absoluta ou relativa de pacientes com determinada característica. Nas comparações dos desfechos entre os pacientes expostos aos fatores de risco ou prognósticos e aqueles não expostos, o teste t de Student foi utilizado para as variáveis contínuas, e o teste do qui-quadrado ou o teste exato de Fisher foi utilizado para as variáveis categóricas. Para a análise da relação dos fatores associados com o desfecho do retratamento, com a ocorrência de reações adversas ou com a ocorrência de recidivas, utilizou-se a técnica de regressão logística múltipla. Valores de p < 0,05 foram considerados significativos.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul sob o número 626/11.
ResultadosForam incluídos no estudo 229 pacientes, com média de idade de 38,3 ± 12,1 anos (variação: 17-73 anos), sendo 167 homens (72,9%), 175 brancos (76,4%) e 101 alcoolistas (44,1%).
As doses usadas dos fármacos foram as seguintes: estreptomicina, 17,1 ± 2,8 mg/kg por dia; etambutol 20,6 ± 3,6 mg/kg por dia; etionamida 12,8 ± 2,1 mg/kg por dia; e pirazinamida 31,9 ± 5,0 mg/kg por dia. Em 9,6% dos pacientes, a dose prescrita de etambutol foi superior a 25 mg/kg por dia, e em 60,3% dos pacientes, a dose de pirazinamida foi superior a 30 mg/kg por dia. Tais doses são, respectivamente, as doses diárias máximas recomendadas para esses fármacos.
Fizeram uso irregular da medicação 104 pacientes (45,4%). A irregularidade foi significativamente maior entre os alcoolistas do que entre os não alcoolistas (58,4% vs. 36,7%; p = 0,003), assim como essa foi maior entre os pacientes que apresentaram reações adversas digestivas do que entre aqueles que não as apresentaram (59,7% vs. 21,7%; p = 0,002). Não houve diferenças significativas quanto à irregularidade em função de idade, sexo, cor da pele, dose dos fármacos e outros tipos de reações adversas.
Os desfechos do tratamento dos 229 pacientes podem ser observados na Tabela 1. Nos 7 pacientes em que houve modificação do esquema por toxicidade, 3 foram curados posteriormente, 1 com o uso do esquema alternativo e 2 com cirurgia de ressecção pulmonar, totalizando 63,3% de curas.
Na análise bivariada, a taxa de cura foi significativamente menor nos pacientes que usaram irregularmente a medicação, nos que apresentaram reações adversas e nos alcoolistas (Tabela 2). Dentre as reações adversas, apenas as digestivas mostraram-se relacionadas com menores taxas de cura, com valores de 51,5% e 66,9%, respectivamente, nos pacientes com e sem tais reações adversas (p = 0,025). Observou-se que foi fraca a associação entre a não cura da TB e o uso abusivo de álcool, assim como entre a não cura e a ocorrência de reações adversas. Em ambas as situações, o risco relativo (RR) foi de 1,4. Por outro lado, a associação foi mais forte entre a não cura e a irregularidade do tratamento (RR = 5,8). Isso foi corroborado pelos resultados de análise multivariada, com a técnica de regressão logística múltipla: apenas a irregularidade no uso da medicação mostrou-se associada de forma independente a não cura da TB (OR = 16,5; IC95%: 8,3-33,6; p < 0,0001). Não foram detectadas associações significativas de taxa de cura com sexo ou cor da pele (Tabela 2). A idade média dos pacientes curados foi 39,2 anos e aquela dos não curados foi de 37,1 anos, diferença essa não significativa (p = 0,208). Também não foram detectadas diferenças significativas entre os curados e os não curados quanto às doses dos fármacos.
Reações adversas ocorreram em 95 pacientes (41,5%), sendo que alguns apresentaram mais que um tipo de reação. Ocorreram 72 casos de reações digestivas (31,4% dos pacientes), 21 casos de reações auditivas/vestibulares (9,2%), 4 casos de reações articulares (1,7%), 4 casos de reações dermatológicas (1,7%), 3 casos de reações visuais (1,3%) e 5 casos de outros tipos de reações adversas (2,2%). Em apenas 3,1% dos pacientes foi preciso modificar o esquema por toxicidade.
As mulheres e os não alcoolistas apresentaram uma maior proporção de reações adversas. A ocorrência dessas não se mostrou associada com a cor da pele ou com o uso irregular dos fármacos (Tabela 3). Também não houve associação entre as reações adversas e a idade dos pacientes ou entre tais reações e as doses dos fármacos. Na análise multivariada, o uso abusivo de álcool mostrou-se como fator de proteção (OR = 0,46; IC95%: 0,27-0,80; p = 0,006).
A incidência maior de reações adversas nas mulheres do que nos homens decorreu de uma maior frequência de reações adversas digestivas (50,0% vs. 24,6%; p = 0,0002). O mesmo ocorreu com os não alcoolistas em relação aos alcoolistas (39,1% vs. 21,8%; p = 0,005).
Dentre os 142 pacientes curados, foram detectadas 17 recidivas (12,0%) nos 5 anos de seguimento, sendo 14 (9,9%) nos 2 primeiros anos. Em função do pequeno tamanho da amostra, não foi possível a detecção de associações significativas entre recidiva e potenciais fatores de risco examinados neste estudo.
DiscussãoO esquema 3 foi estabelecido para ser aplicado nos casos de falência do esquema de curta duração com rifampicina, isoniazida e pirazinamida. Em geral, essas falências são observadas em pacientes que não aderem ao tratamento com o esquema RHZ. É reconhecido na literatura que quanto mais irregular for o tratamento, maiores são as taxas de abandono, de falência e de óbito e, em consequência, menor a taxa de cura.(8) Em um estudo conduzido em Porto Alegre entre 1983 e 1987 com 399 adultos bacilíferos, tratados com o esquema RHZ, no qual 18,3% dos pacientes fizeram uso irregular dos fármacos, observou-se que a taxa de falência foi 7,5 vezes maior no grupo com uso irregular do que no grupo com uso regular.(5)
Uma alta proporção dos pacientes para os quais foi indicado o esquema 3 possuía história prévia de uso irregular dos fármacos, e, por isso, apresentavam, ab initio, um expressivo risco de repetir a irregularidade com o retratamento. Esse risco era potencializado pelo fato de que o esquema 3 inclui um número maior de fármacos para serem usados por tempo maior e também pelo fato de que um dos fármacos tem administração parenteral. A taxa de irregularidade no uso do esquema SEEtZ foi de 45,4%, ou seja, 2,5 vezes maior do que o observado no estudo anteriormente referido com o esquema RHZ.(5) No entanto, essa taxa de irregularidade pode ser maior ainda, pois os dados sobre o modo de uso dos fármacos basearam-se, em parte, em informações prestadas pelos pacientes, que poderiam ter omitido o uso irregular dos fármacos, constituindo, assim, um viés de informação.
A irregularidade geralmente se deve a problemas psicossociais, como o alcoolismo, que é uma situação reconhecida como de risco para a não adesão ao tratamento,(8,9) mas que pode ser devida também à toxicidade dos medicamentos, que determina interrupções frequentes no uso dos fármacos. Neste estudo, a prevalência de alcoolismo foi de 44,1% e a incidência de reações adversas foi de 41,5%, sendo essa última taxa bem superior à observada com o uso do esquema 1.(4) Observamos que tanto os pacientes alcoolistas, quanto os pacientes com reações adversas, fizeram uso irregular da medicação em proporção significativamente maior do que os demais.
No caso particular das reações adversas digestivas, não se pode afastar a possibilidade de que realmente essas tenham interferido nos desfechos, principalmente entre as mulheres, com incidência significativamente maior do que nos homens (p = 0,0002).
Os alcoolistas apresentaram taxas menores de reações adversas do que os não alcoolistas. Na análise estatística, o uso de álcool mostrou-se como fator de proteção para a ocorrência de reações adversas. Dadas as características retrospectivas deste estudo, explicações para esse achado não puderam ser exploradas pelos autores. No entanto, uma possível explicação para essa proteção seria o fato de os alcoolistas terem usado uma menor quantidade de comprimidos prescritos.
A taxa geral de cura com o uso do esquema 3 foi de 62%. Essa baixa taxa deve-se principalmente à irregularidade do tratamento, pois, dentre os pacientes que usaram os fármacos de modo irregular, apenas 31% foram curados. Entre os pacientes que usaram regularmente os fármacos, a taxa de cura foi quase três vezes maior, chegando a 88%, resultado bastante satisfatório, inclusive superior aos 85% recomendados pela Organização Mundial da Saúde como meta para a cura de casos bacilíferos,(10) apesar das limitações dos fármacos que compõem o esquema. A estreptomicina e a etionamida não são fármacos de primeira linha no tratamento da TB,(2) pelo seu baixo poder bactericida e esterilizante das lesões.(6) Além disso, a etionamida apresenta maior potencial para o desenvolvimento de reações adversas digestivas do que os demais fármacos do esquema.(2,3) Porém, não se pode excluir que, em alguns casos, o insucesso do tratamento se deva à resistência primária aos fármacos, uma vez que não foram feitos testes de sensibilidade antes do inicio do tratamento. Isso impossibilitou que os autores pudessem avaliar, separadamente, os casos de resistência primária e os casos de resistência adquirida, esses últimos, em geral, secundários ao uso irregular dos fármacos.
Há um consenso internacional que considera que um bom esquema não deve apresentar uma taxa de recidiva superior a 5%.(11) No presente estudo, os pacientes curados com o uso do esquema 3 apresentaram uma taxa de recidiva de 12% nos 5 anos de acompanhamento. Essa taxa foi quase três vezes maior que a taxa observada em Porto Alegre com o uso do esquema RHZ.(12) Partindo-se do pressuposto de que sejam casos de reativação endógena, por causa de cura bacteriológica incompleta, as recidivas podem ter decorrido do fraco poder bactericida do esquema, do tempo inadequado de tratamento (apenas 12 meses), da utilização de subdoses dos fármacos (no caso de uso irregular) ou, ainda, da escolha desses sem ter sido levada em consideração a presença de resistência pré-existente.(12)
Dessa forma, o esquema 3 não se mostrou adequado para o tratamento de 38% dos casos de falência do esquema RHZ, assim como para 12% dos curados com o esquema e que apresentaram recidiva da doença, em função de três grandes problemas: o esquema 3 é indicado para uma população selecionada de alto risco de não adesão ao tratamento; a etionamida é pouco potente e apresenta alta incidência de reações adversas digestivas que, possivelmente, contribuem para a irregularidade do tratamento; e a duração do esquema de tratamento é de apenas 12 meses. Por outro lado, considerando a alta taxa de cura entre os pacientes que fizeram uso regular da medicação, o esquema 3, estendido para 18 meses, poderia ser cogitado para pacientes com comprovada adesão ao tratamento e para os quais outros esquemas mais efetivos não puderem ser administrados por quaisquer motivos.
Uma das limitações do presente estudo foi a não utilização dos dados de um dos três ambulatórios de atendimento de casos de falência do esquema 1. Esse possível viés de seleção é parcialmente minimizado pela homogeneidade de todos os pacientes, conforme pode ser verificado no sistema de informações pesquisado, o qual indica que os pacientes do ambulatório não estudado tinham uma distribuição por sexo e idade, além de taxas de cura, semelhantes às dos pacientes incluídos no presente estudo. Outra possível limitação está relacionada com a não realização de testes de sensibilidade antes do início do tratamento. Porém, em função da magnitude da relação observada entre o uso irregular dos fármacos e a baixa taxa de cura, os eventuais casos de resistência primária não devem estar influindo nos desfechos. O potencial viés de informação decorrente do fato de que o tratamento tenha sido autoadministrado é outra limitação do estudo. Se pudessem ser retirados do grupo de pacientes que usou regularmente a medicação aqueles pacientes que tenham omitido a irregularidade do tratamento, a taxa de cura possivelmente seria maior do que os 88% anteriormente referidos. Não foram tampouco coletadas informações relativas a potenciais fatores de confusão hoje considerados clássicos, tais como o nível de escolaridade, o nível de renda ou a classe social. Dados sobre outros fatores, como o uso de drogas ilícitas e a infecção por HIV, não foram coletados: o primeiro porque era pouco frequente e o segundo por não se dispor rotineiramente, à época, de testes anti-HIV. Finalmente, dadas as características retrospectivas do estudo, não foi possível a obtenção de novas informações que pudessem ser úteis para explorar potenciais hipóteses explicativas.
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* Trabalho realizado no Hospital Sanatório Partenon, Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) Brasil.
Endereço para correspondência: Pedro Dornelles Picon. Rua Filipinas, 295, CEP 91050-020, Porto Alegre, RS, Brasil.
Tel. 55 51 3340-0660. E-mail: pedro.picon@hotmail.com
Apoio financeiro: Nenhum.
Recebido para publicação em 23/9/2010. Aprovado, após revisão, em 26/4/2011.
Sobre os autoresPedro Dornelles Picon
Médico. Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) Brasil.
Carlos Fernando Carvalho Rizzon
Médico. Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) Brasil.
Sergio Luiz Bassanesi
Professor. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) Brasil.
Luiz Carlos Correa da Silva
Professor de Pneumologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre (RS); e Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo (RS) Brasil.
Maria de Lourdes Della Giustina
Médica Pneumologista. Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) Brasil.