Ao Editor:
A anemia falciforme é a doença hereditária monogênica mais comum no Brasil, acometendo principalmente negros e pardos, mas também atingindo brancos.(1) A distribuição do gene HbS é bastante heterogênea no país, dependendo da composição racial regional da população. A prevalência de heterozigotos é maior no norte e nordeste (6-10%) e menor no sudeste e sul (2-3%). A anemia falciforme cursa com eventos infecciosos, hemolíticos e veno-oclusivos frequentes. As complicações pulmonares são responsáveis por 20-30% do total de mortes associadas com essa doença e envolvem, principalmente, a síndrome torácica aguda e o desenvolvimento de hipertensão pulmonar (HP).(1) Além disso, pacientes com anemia falciforme parecem exibir uma maior tendência a broncoespasmos do que a população geral.(2)
As taxas de mortalidade de pacientes com anemia falciforme vêm diminuindo significativamente ao longo das últimas décadas. Esse fato deve-se a implantação de programas para o diagnóstico precoce e consequente instituição de medidas profiláticas, já a partir do período neonatal. A introdução de tratamentos com hidroxiureia parece também ter contribuído, igualmente, para a redução da mortalidade entre adultos. Como consequência, observamos hoje a mudança da mortalidade dessa moléstia em direção a fases mais tardias. Admite-se que a sobrevida mediana atual de pacientes com anemia falciforme gire em torno de 42 anos para homens e de 48 anos para mulheres.(3) De acordo com esses mesmos dados, a probabilidade de sobrevida desses pacientes até os 40 anos gira em torno de 89% para homens e de 95% para as mulheres.
Dados fornecidos pelo Ministério da Saúde Brasileiro, referidos por Cançado Jesus(1) em 2007, estimam que haja entre 25.000 e 30.000 pacientes com anemia falciforme no Brasil. Além disso, atualmente, são diagnosticados aproximadamente 3.500 casos novos da doença por ano no país. Estudos recentes indicam que a prevalência de HP, avaliada por ecocardiografia, gira em torno de 27-40% nesse grupo de doentes.(4,5) Entretanto, após a realização de cateterismo direito, essa prevalência caiu para 6-10%. A prevalência de HP pré-capilar, confirmada por estudo hemodinâmico, variou de 2,8-3,8%.(4,5) A partir desses resultados, podemos especular o tamanho do problema que a HP associada à doença falciforme pode um dia tomar no Brasil. Se considerarmos que são diagnosticados 3.500 casos novos da anemia ao ano, que a probabilidade desses pacientes atingirem 40 anos seja de 0,9 e que a real prevalência de HP pré-capilar situa-se em torno de 0,033, assim como que essas taxas permaneçam estáveis nas próximas décadas, em pouco tempo poderemos estar contando com 104 casos novos de HP associada à anemia falciforme ao ano.
Em um estudo na França sobre HP, foram estimadas prevalências de 15 casos por milhão de habitantes, para todas as formas do distúrbio, e de 6 casos por milhão, para a forma idiopática.(6) Considerando que a população brasileira atual gira em torno de 190 milhões de pessoas, podemos igualmente especular que o número total de casos de HP no Brasil seja de 2.850, sendo 1.140 da forma idiopática. Por outro lado, o número potencial de casos de HP associada à anemia falciforme gira atualmente entre 743 e 891, ou seja, a anemia falciforme tem o potencial de vir a ser responsável por aproximadamente 30% de todos os casos de HP no Brasil.
Naturalmente que os dados epidemiológicos da França em 2006 não se aplicam automaticamente ao Brasil de hoje, o qual tem também na esquistossomose outra fonte potencial importante de casos de HP. Além disso, não sabemos ao certo quantos pacientes com anemia falciforme realmente conseguirão viver o suficiente para desenvolver HP. Contudo, esse tipo de exercício mental serve para nos alertar de um grave problema médico em potencial. Soma-se a isso, ainda, a ausência de evidências conclusivas acerca das melhores condutas terapêuticas a serem adotadas na HP associada à anemia falciforme. Por tudo isso, acreditamos que os centros de referência em HP brasileiros devem desenvolver, o quanto antes, um número maior de estudos originais relacionados com a incidência, a prevalência e as respostas a eventuais tratamentos medicamentosos dessa condição em nosso meio.
Adriana Ignacio de Padua
Médica Assistente,
Seção de Pneumologia,
Hospital das Clínicas,
Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo - FMRP-USP - Ribeirão Preto (SP) Brasil
José Antônio Baddini Martinez
Professor Associado,
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo - FMRP-USP - Ribeirão Preto (SP) Brasil
Referências
1. Cançado RD, Jesus JA. A doença falciforme no Brasil. Bras Hematol Hemoter. 2007;29(3):204-6.
2. Vendramini EC, Vianna EO, De Lucena Angulo I, De Castro FB, Martinez JA, Terra-Filho J. Lung function and airway hyperresponsiveness in adult patients with sickle cell disease. Am J Med Sci. 2006;332(2):68-72.
3. Platt OS, Brambilla DJ, Rosse WF, Milner PF, Castro O, Steinberg MH, et al. Mortality in sickle cell disease. Life expectancy and risk factors for early death. N Engl J Med. 1994;330(23):1639-44.
4. Parent F, Bachir D, Inamo J, Lionnet F, Driss F, Loko G, et al. A hemodynamic study of pulmonary hypertension in sickle cell disease. N Engl J Med. 2011;365(1):44-53.
5. Fonseca GH, Souza R, Salemi VM, Jardim CV, Gualandro SF. Pulmonary hypertension diagnosed by right heart catheterization in sickle cell disease. Eur Respir J. 2011 Sep 8. [Epub ahead of print]
6. Humbert M, Sitbon O, Chaouat A, Bertocchi M, Habib G, Gressin V, et al. Pulmonary arterial hypertension in France: results from a national registry. Am J Respir Crit Care Med. 2006;173(9):1023-30.