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Relato de Caso

Tireoide ectópica no mediastino anterior

Ectopic thyroid in the anterior mediastinum

Maria José Araújo da Cunha Guimarães, Carla Manuela Silva Valente, Lèlita Santos, Manuel Fontes Baganha

ABSTRACT

Ectopic thyroid is a rare condition, and its location in the anterior mediastinum is even rarer, there having been only 5 reported cases in the past 30 years. Here, we describe 2 clinical cases and present a review of the literature regarding the etiology, embryology and clinical manifestations of ectopic thyroid.

Keywords: Thyroid dysgenesis; Mediastinum; Goiter.

RESUMO

A ectopia de tireoide é rara, e a sua localização no mediastino anterior é excepcional, estando descritos apenas 5 casos nos últimos 30 anos. Os autores apresentam 2 casos clínicos, além de uma revisão da literatura abordando a etiologia, a embriologia e manifestações clínicas de ectopia de tireoide.

Palavras-chave: Disgenesia da tireoide; Mediastino; Bócio.

Introdução

A etiologia da tireoide ectópica não é totalmente conhecida, porém as mutações no fator de transcrição da tireoide,(1-3) nos genes PAX8 e no gene do receptor do thyroid stimulating hormone (TSH; hormônio estimulante da tireoide) foram implicados numa minoria de pacientes com disgenesia da tireoide.(4-6)

A ocorrência de tecido tireoidiano ectópico é uma aberração embriológica rara.(7,8) Entre os doentes com hipotireoidismo, estima-se que a incidência de tireoide ectópica seja de 1/4.000 a 1/8.000.(9) Quando ocorre, localiza-se ao longo de uma linha que segue a via descendente de migração do primórdio da tireoide desde o foramen caecum(5) até a sua localização pré-traqueal.(8)

O desenvolvimento do tecido tireoidiano ectópico pode ocorrer em qualquer momento da migração da tireoide, resultando em ectopia lingual, sublingual, pré-laríngea e subesternal (mediastino).(7,9)

Relato de caso

O primeiro caso clínico é de uma mulher de 40 anos, branca, que recorreu ao serviço de urgência em maio de 2003, com um quadro clínico caracterizado por dispneia, tosse irritativa, sudorese noturna, astenia, mialgias, náuseas e temperaturas subfebris (37,5-38,0°C), com 3 semanas de evolução.

Dos antecedentes patológicos, salientavam-se varizes nos membros inferiores, um episódio de cólica renal em 1998 e um de cólica biliar por litíase vesicular em 2000.

Dos hábitos da doente, salienta-se a ausência de consumo de bebidas alcoólicas, tabaco ou drogas ilícitas.
Medicada com contraceptivo oral há vários anos.

Do contexto epidemiológico, destaca-se o fato de a doente viver num meio urbano, com boas condições higiênico-sanitárias e sem contato com animais. Também não apresentava comportamentos sexuais de risco.
História de alergia à penicilina, conhecida há vários anos.

Relativamente aos antecedentes ginecológico-obstétricos, a doente referiu gravidez de termo com 40 semanas e parto eutócico em 1986.

Dos antecedentes familiares, salientavam-se: pai falecido aos 59 anos e mãe aos 70, ambos por acidente vascular cerebral; um irmão com epilepsia e dois com diabetes.

Ao exame objetivo, apresentava-se consciente, orientada e colaborante; corada e hidratada; sem cianose; e sem exantemas ou adenopatias.

Peso de 78 kg e altura de 1,53 m com índice de massa corpórea de 32 kg/m2. Estava subfebril (37.5°C), com pressão arterial de 120/70 mmHg, pulso com frequência cardíaca (FC) de 96 bpm e frequência respiratória de 32 ciclos/min.

Apresentava dispneia, mantendo, contudo, boa expansibilidade torácica. À palpação, apresentava transmissão das vibrações vocais mantida, notando-se um som parenquimatoso à percussão de todo o campo pulmonar. A auscultação pulmonar revelou diminuição do murmúrio vesicular no campo pulmonar direito desde o 3º espaço intercostal até a base, sem ruídos adventícios. A auscultação cardíaca era rítmica, sem sopros e com uma FC de 96 bpm.

O abdômen apresentava-se mole e depressível, indolor à palpação, e não eram palpáveis massas ou organomegalias.

Os membros inferiores apresentavam varizes no território da grande safena, e o exame neurológico sumário era normal.

Perante este quadro clínico, foram colocadas as seguintes hipóteses de diagnóstico: pneumonia da comunidade, nomeadamente bacteriana (não excluindo a germe-específico) dada a febre e as alterações detectadas ao exame objetivo e, em segundo lugar, uma eventual patologia neoplásica, nomeadamente linfoma ou neoplasia do pulmão pelo componente sistêmico da avaliação clínica associada à eventual presença de uma massa no tórax ao exame objetivo.

O estudo complementar efetuado ainda no serviço de urgência revelou anemia ­normocrômica e normocítica (hemoglobina, 11,3 mg/dL; volume globular médio, 86,8 fl; e concentração da hemoglobina corpuscular média, 33,7 mg/L), leucócitos totais normais (7 g/L), ­hipocalemia (3,3 mmol/L), hipoalbuminemia (3 g/dL), elevação de transaminase oxalacética (60 U/L), transaminase pirúvica (79 U/L), desidrogenase lática (196 U/L), fosfatase alcalina (272 U/L) e proteína C reativa (19,2 mg/dL).

Apresentava também hipoxemia ao ar ambiente (PaO2: 79,5 mmHg) e ligeira hipocapnia (33 mmHg). A radiografia do tórax revelou uma opacidade no terço médio do campo pulmonar direito (Figura 1).



A pneumonia bacteriana foi colocada como a principal hipótese de diagnóstico, e a doente foi internada iniciando terapêutica com claritromicina, cefazolina e oxigênio, tendo obtido melhora clínica e analítica ao 2º dia de tratamento, embora mantendo ligeira hipoxemia, bem como uma elevação da velocidade de sedimentação globular (90 mm na 1ª hora).

Já no internamento foram realizadas hemoculturas, urocultura e sorologias para os gêneros Chlamydia, Mycoplasma, Brucella, Salmonella, Rickettsia, Legionella e Coxiella, assim como para citomegalovírus, vírus Epstein-Barr e vírus da hepatite A, B e C. Todos os resultados foram negativos. O teste de urina não tinha alterações, e a fenotipagem linfocitária era normal. O proteinograma eletroforético não revelou alterações e a ecografia abdominal revelou litíase vesicular.

A radiografia do tórax foi repetida no 8º dia de internamento, mostrando persistência da opacidade já descrita. Para um melhor esclarecimento realizou-se, então, uma TC torácica, que revelou uma formação sólida, no mediastino anterior, com 10 cm no maior diâmetro, com planos de clivagem com o coração e o pulmão, insinuando-se entre os lobos pulmonares e comprimindo-os. Realizou-se também uma ressonância magnética para um melhor esclarecimento dos limites da lesão, nomeadamente no que se refere ao plano de clivagem com as estruturas do mediastino (Figura 2), que confirmou as imagens da TC.



Perante estes novos dados, colocou-se agora a hipótese de estarmos perante uma patologia neoplásica.

Neste âmbito, pensamos poder tratar-se de um tumor de células germinativas, um tumor neurogênico, um linfoma, um tumor tímico, um tumor mesenquimatoso ou, mais remotamente, uma massa glandular ectópica, nomeadamente a tireoide.

A doente foi então proposta para cirurgia, o que possibilitou a exérese de uma massa mediastínica anterior (12 × 9 cm de tamanho e 400 g de peso), bem delimitada por uma cápsula, cuja histologia correspondeu a tecido tireoidiano ectópico, com morfologia sobreponível a uma hiperplasia nodular da tireoide, individualizando-se em microfolículos contendo coloide no seu interior e reação inflamatória adjacente (Figura 2).

As dosagens de TSH e dos hormônios tireoidianos livres foram normais, e a ecografia da tireoide revelou uma glândula de dimensões aumentadas, heterogênea, com vários nódulos sólidos hipoecogênicos nos lobos esquerdo (o maior com 1,1 cm) e direito (o maior com 2,8 cm), não existindo adenopatias cervicais.

A doente foi submetida, ainda, a uma cintilografia marcada com tecnécio (Tc99m) para verificar se existiam outras glândulas ectópicas e para o estudo funcional e morfológico da tireoide, que mostrou possuir integridade funcional.

Foi medicada com levotiroxina numa tentativa de reduzir o bócio mergulhante, e foi posteriormente submetida à tireoidectomia total.
Atualmente está medicada com 100 µg de levotiroxina por dia e encontra-se assintomática.

O segundo caso clínico é também de uma mulher de 57 anos de idade, branca, não fumante, internada para o estudo de lesão do mediastino superior.

A doente apresentava um quadro clínico de astenia intensa, dispneia aos esforços moderados, ortopneia e disfonia há 4 meses.

Havia sido medicada com antibióticos em um ambulatório por possível faringite, sem melhoria.

Tratava-se de uma doente com antecedentes de tireoidectomia parcial direita há 9 anos por hiperplasia nodular. Era medicada cronicamente com levotiroxina 0,1 mg i.d.

Ao exame objetivo, apresentava-se consciente, orientada, apirética e eupneica. A auscultação pulmonar salientava uma diminuição do murmúrio vesicular no vértice do hemitórax direito, sem ruídos adventícios. À palpação da tireoide, apresentava hipertrofia do lobo esquerdo, sem massa palpável à direita.
Analiticamente não apresentava alterações.

A radiografia do tórax (póstero-anterior e perfil direito) revelava alargamento do mediastino superior à direita.

A TC do tórax evidenciava, no mediastino superior, em localização lateral direita entre a veia cava superior e o contorno direito da traqueia, uma formação arredondada, expansiva, sem sinais infiltrativos, com 4,5 × 4,3 cm e contornos mal definidos (Figura 3).



A ecografia da tireoide identificou apenas dois nódulos sólidos ecogênicos no lobo esquerdo.

Realizou-se fibrobroncoscopia, revelando um desvio da traqueia para a direita e árvore brônquica com sinais inflamatórios moderados.

As hormônios tireoidianos tinham níveis normais, verificando-se ausência de anticorpos antimicrossomais e antitiroglobulina. Marcadores tumorais negativos.

A cintilografia da tireoide com Tc99m revelou tireoide reduzida ao seu lobo esquerdo.

A doente foi submetida à exérese do tumor do mediastino de 7 × 5 × 4 cm, sendo o relatório microscópico da peça operatória compatível com tireoide intramediastínica com padrão macrofolicular e sem atipia celular.

A doente foi encaminhada para a consulta externa de endocrinologia, sendo mantida a medicação com levotiroxina 0,1 mg i.d.

Discussão

A prevalência de tecido tireoidiano ectópico varia de 7-10%.(8)
A ectopia geralmente ocorre ao longo da linha média, e as localizações laterais àquela são raras,(10) conhecendo-se pouco mais de meia dúzia de casos.

No que diz respeito à localização intratorácica (no mediastino), apenas encontramos 7 casos. Destes, 5 estavam localizados no mediastino anterior,(8,11-13) tal como neste relato e, em 2 casos,(12,14) a localização era posterior. Assim, os bócios ectópicos totalmente intratorácicos são raros,(11,12,15) mas têm que ser considerados no diagnóstico diferencial de todas as massas mediastínicas.(15)

A maioria dos doentes com tireoide ectópica são eutireoidianos e assintomáticos, mas podem surgir sintomas obstrutivos ou por compressão, sobretudo do trato aerodigestivo superior,(8) hipotireoidismo(16) e muito mais raramente, hipertireoidismo.(8,17,18)

Outras manifestações menos frequentes decorrem de localizações mais raras. Descreveram-se casos que apenas se tornaram sintomáticos durante a gravidez, com regressão após o parto.(16)

Concluindo, a ectopia de tireoide é rara, e a localização no mediastino anterior é excepcional (apenas 5 casos nos últimos 30 anos). Os autores pretendem chamar a atenção para que se considere a ectopia de tireoide no diagnóstico diferencial, nomeadamente de massas mediastínicas, já que pode haver o risco de se provocar, após a cirurgia, hipotireoidismo, se a glândula ectópica não for funcionante. Salienta-se o fato de o diagnóstico ser essencialmente anatomopatológico e feito, na maioria dos casos, após a cirurgia.

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Sobre os autores

Maria José Araújo da Cunha Guimarães
Interna. Internato Complementar de Pneumologia, Hospitais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.

Carla Manuela Silva Valente
Interna. Internato Complementar de Pneumologia, Hospitais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.

Lèlita Santos
Assistente Hospitalar Graduada de Medicina Interna. Hospitais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.

Manuel Fontes Baganha
Diretor do Departamento de Ciências Pneumológicas e Alergológicas. Hospitais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.



* Trabalho realizado no Departamento de Ciências Pneumológicas e Alergológicas dos Hospitais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.
Endereço para correspondência: Maria José Araújo da Cunha Guimarães. Departamento de Ciências Pneumológicas e Alergológicas, Hospitais da Universidade de Coimbra, Praceta Mota Pinto, 2º Piso, 3000-075, Coimbra, Portugal.
Apoio financeiro: Nenhum.
Tel 00 351 93 460-9135. Email: dr.mariajose@gmx.net
Recebido para publicação em 13/5/2008. Aprovado, após revisão, em 3/7/2008.

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