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Editorial

Espirometria: o que é normal?

Spirometry: what's normal?

Luiz Carlos Corrêa da Silva

Na metade do século XIX, Hutchinson mediu a capacidade vital e procurou estabelecer, dentro das limitadas condições da época, correlações clínicas e valores de referência de normalidade para seus pacientes.(1) Nos dias atuais, mesmo com os avanços tecnológicos, ainda permanecem algumas dificuldades para conseguir tabelas de referência adequadas. Algumas variáveis interferem no estabelecimento dos padrões de normalidade, tais como extremos etários, ponderais ou de envergadura; diversidades étnicas e regionais; exposições individuais e coletivas a fatores ambientais; enfim, tudo o que possa influenciar a função pulmonar.

Nas últimas décadas, propuseram-se tabelas de normalidade provenientes de populações heterogêneas e sem critérios de inclusão uniformes na América do Norte e na Europa. Como os espirômetros usados no Brasil são geralmente importados e trazem incluídas as equações de valores normais previstos do país de origem, estes referenciais têm sido usados na nossa rotina, especialmente a tabela de Knudson et al.(2) Alguns autores demonstraram desvio significativo das médias previstas por cinco equações muito usadas (Quanjer, Knudson, Paoletti, Crapo e Roca) em indivíduos entre 20 e 44 anos de idade e chamaram a atenção para a necessidade de reavaliar as recomendações vigentes.(3) Numa tentativa de reduzir a variabilidade técnica das espirometrias, as sociedades de Pneumologia têm padronizado instrumentos e procedimentos para medir a função pulmonar.(4,5) No entanto, estas instituições ainda não elaboraram seus próprios referenciais de normalidade.

O maior desafio para quem se preocupa com a qualidade dos exames espirométricos é, por um lado, assegurar que os valores funcionais obtidos sejam exatos e, por outro, estabelecer se são normais ou não. Equipamentos de boa qualidade, treinamento técnico continuado e desempenho colaborativo do paciente são fatores qualificadores. Além disso, é essencial que a tabela da normalidade prevista para o paciente individual seja adequada às suas características, particularmente quanto a gênero, biótipo, idade e etnia. A determinação dos limites inferiores da normalidade é o parâmetro que se apresenta como um dos mais cruciais.(6)

Um questionamento que nós, pneumologistas brasileiros, desde há muito fazemos é o de que as tabelas de normalidade espirométrica provenientes de outros países, oriundas de amostras populacionais diferentes da nossa, não são satisfatórias. Ainda carecemos de tabela própria, adequada para nossa população e obtida por metodologia correta.

Em 1992, o Projeto Pneumobil possibilitou a construção da primeira tabela nacional para referência de valores espirométricos normais.(7) Usou-se espirômetro de fole, o desempenho técnico não foi uniforme e a captação dos casos foi por busca voluntária. Recentemente, com o Programa Respire e Viva, surgiu uma nova oportunidade para avaliar a função pulmonar da população brasileira.(8) Para o atual estudo, mudou-se a metodologia na tentativa de corrigir alguns viéses do levantamento anterior: inclusão de maior número de idosos e apenas de caucasianos; exclusão de situações que possam influenciar a função pulmonar, tais como a exposição a tabagismo passivo maciço ou a fumaça de fogão a lenha, e de casos de excesso de peso; estudo mais acurado da curva expiratória forçada pela maior exigência para aceitação das curvas; medida de fluxos instantâneos e da relação entre volume expiratório forçado no primeiro segundo e volume expiratório forçado nos primeiros seis segundos; uso de espirômetros de fluxo de melhor qualidade (Multispiro; Creative Biomedics, San Clemente, CA, EUA) e melhor treinamento dos técnicos em espirometria. Segundo os autores, obtiveram-se valores para capacidade vital forçada e volume expiratório forçado no primeiro segundo superiores aos de 1992, provavelmente devido a fatores técnicos.

Estas duas iniciativas brasileiras, as quais foram patrocinadas pela indústria farmacêutica (Boehringer e Boehringer-Pfizer, respectivamente), tiveram como principal objetivo a detecção de casos de doença pulmonar obstrutiva crônica em fase precoce. Certamente, o atual estudo também apresenta viéses, mas é o melhor disponível até o momento. Futuramente, a tabela de normalidade para função pulmonar poderá ser mais adequada desde que se consiga melhorar alguns itens metodológicos: escolha aleatória da amostra, inclusão de todas as etnias (lembre-se de que a população brasileira é essencialmente miscigenada) e inclusão de um maior número de indivíduos que apresentem as variáveis mais importantes e suas diversificações quanto à etnia, idade, altura e peso. Também, deve ser avaliada a possibilidade de regionalização de tabelas, haja vista as grandes diferenças das características populacionais entre o norte e o sul do país.

Numa reflexão crítica, considerando que a função pulmonar normal pode ter grande variação, particularmente nos extremos etários e de biótipo, o mais adequado seria a monitoração individual. Assim, estabelecer-se-ia um padrão para cada indivíduo e, por ocasião de adoecimento, as diferenças em relação aos valores anteriores seriam atribuídas indubitavelmente à doença em si.

Os valores de referência local de normalidade para espirometria devem ser revisados periodicamente com a utilização de metodologia adequada, particularmente no que diz respeito à seleção da amostra, aos equipamentos acurados e ao treinamento de técnicos. Algumas diferenças temporais também exigem esta reavaliação, tais como maior longevidade e mudanças ambientais e epidemiológicas. Certamente, essa tarefa deverá ser um compromisso institucional estrito da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) por meio do seu Departamento de Função Pulmonar.

Não poderíamos deixar de ressaltar a atuação do Dr. Carlos Alberto Pereira, o qual tem contribuído enormemente para o desenvolvimento da fisiopatologia pulmonar e dos testes de função pulmonar no nosso país. Ratto, Rigatto e Lemle, entre outros, também deixaram suas grandes contribuições, e como resposta ao esforço destes colegas e de muitos outros que atuam no setor, deixamos a sugestão de que a SBPT normatize junto aos órgãos competentes a obrigatoriedade de que todos os espirômetros em uso no país contenham a tabela oficial da SBPT no seu software.

Referências

1. Hutchinson J. On the capacity of the lungs and on the respiratory movements with the view of establishing a precise and easy method of detecting disease by the spirometer. Med Chir Tr [London, England]. 1846;29:137-252.

2. Knudson RJ, Lebowitz MD, Holberg CJ, Burrows B. Changes in the normal maximal expiratory flow-volume curve with growth and aging. Am Rev Respir Dis. 1983;127(6):725-34.

3. Roca J, Burgos F, Sunyer J, Saez M, Chinn S, Anto JM, et al. References values for forced spirometry. Group of the European Community Respiratory Health Survey. Eur Respir J. 1998;11(6):1354-62.

4. Lung function testing: selection of reference values and interpretative strategies. American Thoracic Society. Am Rev Respir Dis. 1991;144(5):1202-18.

5. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Diretrizes para Testes de Função Pulmonar. J Pneumol. 2002;28(Supl. 3):S1-S238.

6. Crapo RO. The role of reference values in interpreting lung function tests. Eur Respir J. 2004;24(3):341-2.

7. Pereira CAC, Barreto SP, Simões JG, Pereira FWL, Gerstler JG, Nakatani J. Valores de referência para espirometria em uma amostra da população brasileira adulta. J Pneumol. 1992;18(1):10-22.

8. Pereira CAC, Sato T, Rodrigues SC. Novos valores de referência para espirometria forçada em brasileiros adultos de raça branca. J Bras Pneumol. 2007;33(4):397-406.
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Laboratório de Função Pulmonar do Pavilhão Pereira Filho, Complexo Hospitalar da Santa Casa de Porto Alegre

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